Descampado
Homem chegado do interior, agricultor modesto, na capital de muitos prédios e da velocidade. Chapéu de palha figurando pertença a uma antiga ordem de lutas. Guarda no porte de andarilho sombras de íntima convicção, realçado por calça desgastada sem padrão e uma camisa sóbria, em tom de cinza. No olhar passam reflexos de espanto e de orfandade.
Parece mais um espantalho aristocrata, arrastando-se entre os automóveis parados no sinal vermelho. Um boneco à espera de aves predadoras do roçado, que lhe justifiquem a existência. Executa passos lentos, pois o calor sugere contenção. São idas curtas de janela em janela, antes que essas borboletas de metal e vidro retomem seu voo; a sorte do instante mágico de passageira admiração. Porém ele encontra a cada vez sempre nova frustração; a acolhida é uma colheita rara no meio do asfalto.
Passam outros carros em modelos recém-lançados, passam outras vidas em novas rodas, passa o tempo guarnecido por modulantes raios de sol, só não passa a fome. Ainda está o cartaz pendente das mãos do homem, dizeres de uma falta estranhamente metafísica, tão próxima e tão distante desse mundo de ares condicionados e do resguardo espesso de vidros fumês. Quem sabe o astro-sol secará também mais essa urgência, reduzindo a angústia ao matiz do mínimo vital, até vir a próxima chuva salvadora?
Nas lembranças mais alegres do homem pulsam estações naturais do campo, moram saudações de desconhecidos ao longo de estradas de terra, resvalam-se olhares, na cumplicidade de quem muito caminha ao longo dos dias, nas várias direções. Cerca-lhes a todos um manto de modéstia sobre esforços sempre recomeçados, no revolver cotidiano da terra e da vida. A suave certeza do céu benevolente, a abençoar as necessidades e os feitos do viver.
Mas agora, em meio ao tráfico urbano e às cores ritmadas do semáforo, a fé desespera. De tanto esperar, vai-se embora também a serenidade do arranjo de tudo, correndo loucamente para algum outro lugar, onde haja tranquilidade de verde e apascentamento, para sondar as razões da terra.
O homem em desencanto cola o rosto na janela preta do automóvel branco a sua frente. Tenta enxergar além das paredes dessa lousa movente, que abriga juízos certeiros acerca de todos os percursos. Será em vão: o reconhecimento não se manifesta, é mais um pedinte dentre tantos outros, afinal. “Essa gente não nasceu para empreender”...
Acode então a última razão ao homem. Em impulso arcaico, a marca desconforme será impressa na matéria bruta. Recorda a lição das cabras, na tradição de rebeldia que lhes compete, e bate várias vezes a testa contra o vidro do carro. “Que será do bom senso?”, perguntam chocados os donos da sensatez. Transbordam as ondas da generosidade, faz-se o tsunami das pessoas de bem, na morte da palavra. E no entanto, em algum ponto do universo, chegará a mensagem capital em código Morse: renasce a dignidade, brota a verde semente.
Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.
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