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O CONGRESSO DAS SOMBRAS
 
O Doutor Mário Gadelha era um Ortopedista com uma lista extensa de pacientes, sobretudo nos meses finais dos anos em que braços e tornozelos avariados tinham crescimento exponencial.

Quando a pandemia teve início, veio a preocupação por não poder mais atender os pacientes em seu consultório.

Entrou no universo digital com cautela e criou um canal em um aplicativo de vídeo, dando dicas para tratamentos expressos de lesões e contusões leves para algumas dezenas de seguidores. Foi só quando fez um comentário questionando a pressa dos laboratórios na busca por vacinas, que viu um horizonte dourado se descortinar.

Passado apenas seis meses, ele já tinha quase um milhão de seguidores e sua renda mensal superava em muito a das consultas presenciais. Em seu canal de vídeo aproveitava sua boa aparência e voz encorpada para despejar, simulando uma forte convicção, argumentos pseudocientíficos para desacreditar os laboratórios e as vacinas.

Logo foi convidado para entrar num grupo de um aplicativo de rede social, formado apenas por médicos antivacinas, onde recebeu muitas dicas de tratamentos alternativos para “a cura” da covid-19.

O Doutor Mário Gadelha seguiu vociferando contra a imposição da grande mídia,  que em conluio com empresas farmacêuticas estrangeiras, queriam transformar todos em cobaias para vacinas mal testadas. E acrescentou receitas de tratamentos inovadores, que iam da aplicação de hidroxicloroquina, passando pela proxalutamida, até a injeção de ozônio em orifícios inferiores do corpo humano. Assim, atingiu a marca de quinze milhões de visualizações e entrou no rol dos que recebem remuneração diferenciada do aplicativo de vídeo.

Ignorando algumas e justificando outras, foi sendo tomado por uma indiferença olímpica frente ao número crescente de mortes pelo vírus, inclusive daqueles que não se vacinaram e seguiam o seu receituário enganoso.

Ele era um membro destacado do grupo de médicos que trocara o juramento pelos juros. Se ainda tivesse restos mortais e não virado pó na história, Hipócrates daria cambalhotas em seu túmulo.

Ao cabo de mais um dia de trabalho, Mário desliga a câmera Ultra HD sobre o tripé, sai do escritório convertido em estúdio, carregando um sorriso em expansão. Como gosta de fazer todas as segundas, após gravar o seu vídeo semanal, curte a expectativa das crescentes visualizações e comentários favoráveis, o olhar seletivo ignora as eventuais ofensas, bebendo uma dose generosa de um scotch 12 anos em sua “bergère” adquirida a poucas semanas. O Duplex vem sendo mobiliado com cuidado, seguindo orientações de uma decoradora bem atraente.

Apesar de estar em suas cogitações arranjar uma nova companheira, nesses momentos se regozija por estar divorciado e não ter filhos. Sente-se independente com uma estabilidade financeira que nunca alcançaria tratando de cotovelos e joelhos. Com o sabor residual do envelhecimento em madeira de carvalhos ainda excitando as suas papilas gustativas, resiste à tentação de olhar o smartphone ao sinal de uma notificação.

Prefere conceder um bom tempo, para então apreciar o rosário de comentários que endossam a sua opção por esse estilo de vida.

Mas o segundo sinal atiça sua curiosidade, ao perceber que era do aplicativo do seu grupo. Opa! Há boas novas! Um convite para se reunirem no Salão Dourado, no melhor hotel cinco estrelas da cidade, para confraternizarem e se organizarem pois a mudança de pandemia para endemia, que poderá ocorrer dali a algumas semanas, os obrigará a novas estratégias para se manterem no topo. O encontro se dará na próxima semana e ele compreende a pressa, pois o aumento do percentual de imunizados vem gerando algumas dificuldades.

Sente uma certa excitação antecipada por encontrar colegas de outras localidade e até de outros estados, que até então só estiveram no plano virtual. Além disso pela marca do patrocinador já anunciado no convite (uma grande rede de varejo de alcance nacional), prevê a qualidade dos acepipes e bebidas ao dispor.

No espelho de corpo inteiro do closet a imagem gera satisfação em Mário. Embora o convite não especificasse um traje, sente-se muito bem com o terno completo em tons escuros incluindo uma gravata preta.

Fica aliviado pelo carro padrão executivo do aplicativo que vem buscá-lo, pois não quer se preocupar com algumas doses a mais. Apenas tem uma breve contrariedade quando o motorista mascarado, comenta a ausência do acessório de proteção em seu rosto. Uma nota de cem, passada na celeridade de quem está acostumado à propinas, resolve tudo.

O automóvel do aplicativo entra numa pequena fila de carrões na entrada do Hotel, despejando os convidados ilustres no lobby, fazendo com que o Dr. Gadelha suponha o êxito do evento.

O Salão faz jus ao nome. Um amplo espaço com um teto revestido de imensas placas de estanho pintadas de dourado pontuado por luminárias em forma de disco, o que confere ao ambiente uma iluminação difusa em tons de âmbar.

O centro é ocupado por vinte mesas redondas com as suas respectivas cadeiras, cada qual com serviço completo – pratos, distintos talheres, copos, taças e guardanapos de pano – sobre toalhas de um branco imaculado e tendo ao centro arranjos florais cercados por pratinhos com docinhos gourmets a exemplo de “madeleines” de limão e “brigadeiros” de capim-santo com laranja, bem como garrafas de champanhe mergulhadas em pequenos baldes com gelo.

No palco, que comportaria uma orquestra sinfônica, há uma estrutura que sustenta uma imensa tela ladeada por grandes caixas de som, de onde emana uma música ambiental suave.

O Dr. Mário Gadelha avança passo a passo, examinando tudo como se quisesse absorver a sensação de bem estar proporcionada pelo equilíbrio de todos elementos.

Isso é o que pode ser chamado de luxo na medida certa, sem ostentação, conclui o Ortopedista, quando é interceptado por um homem baixo e sorridente que se aproxima com os braços estendidos.

- Dr. Mário Gadelha, que satisfação em receber o segundo melhor influenciador da nossa causa – envolve Mário com os braços e os estreita.

- Obrigado, Dr. Nunes – ele desfaz o abraço. – Estou me esforçando para ser o primeiro.

Ambos riem e o anfitrião pede que ele se sinta à vontade para circular e depois escolher uma mesa. Um garçom passa ao lado segurando uma bandeja com copos baixos, uma cuba de gelo e uma garrafa de um ótimo whisky. O doutor pede duas doses e três pedrinhas. Saboreia o destilado, sem deixar de pensar que em casa tem melhores e se aproxima de um grupo de três homens e uma mulher. Um dos homens o reconhece e ele se junta a uma conversa animada entre uma médica e médicos que enriqueceram com a pandemia.

Passada uma hora, já sentado à mesa e muito satisfeito com o prato principal, escalopes de filé mignon ao molho madeira acompanhados de um tinto Malbec, dirige a atenção para o Dr. Nunes sobre o palco.

- Peço a atenção de todos, por gentileza. Agradeço o comparecimento integral de todos os membros do nosso seleto grupo. Vamos ver um vídeo que sugere os novos procedimentos que poderemos tomar daqui para a frente, para fidelizarmos de uma vez os nossos apoiadores virtuais.

Ele desce do palco entre aplausos e a luz ambiental diminui em 70% quando o telão começa a exibição.

Entra uma trilha instrumental de estilo new age e surgem imagens em sucessão de pessoas sendo tratadas por métodos terapêuticos alternativos – como tratamentos por biomagnetismo, crenoterapias, reflexoterapia, shantala, suplementos minerais, entre outros – enquanto uma locução de uma bela voz feminina explana sobre as oportunidades de fidelizarmos as pessoas que não creem mais na ciência e nunca tiveram nenhum resquício de consciência social, a se voltarem exclusivamente para si mesmas, para a autodescoberta por meio de terapias holísticas, que são injustamente desacreditadas pela ciência, porque não trazem nenhum lucro para a indústria farmacêutica...

De súbito as imagens e os sons se apagam e o telão volta a ficar em branco. Um burburinho se espalha pelo ambiente, até que o telão volta a exibir imagens, mas sem nenhum som. Agora são imagens de pacientes entubados, deitados em macas nos corredores, enfermeiros esgotados, funerais com pouquíssimas pessoas acompanhando e todas usando máscaras. Sobreposto às imagens, o número total de mortos pela covid que ultrapassa seiscentos e sessenta mil óbitos.

O Dr. Nunes retorna ao palco e correndo, some atrás do telão. O rapaz em uma bancada com um laptop e uma mesa de som afirma não saber o que está acontecendo. O doutor puxa o cabo de energia do equipamento e tudo se desliga, à exceção do telão que continua a mostrar o número funesto sobreposto agora à uma sucessão de fotos em quadradinhos, que vão mudando, de todas as vítimas de covid-19 no país. No salão, o burburinho cresce de volume.

O Dr. Nunes volta para a frente do palco e quase gritando, pede a todos que se tranquilizem e se mantenham sentados. O problema técnico está sendo resolvido e deve ter sido algum tipo de ataque hacker.

Mas os seus olhos se arregalam e ele fica mudo, quando de sua posição superior ele avista nos cantos do salão muitos vultos espalhados, que circundam todo o recinto. Algumas pessoas percebem a reação estranha do anfitrião e dirigem os olhares para fora e se surpreendem. São centenas de vultos de tamanhos distintos que se aproximam do centro, onde os convidados se encontram. A grande maioria dos convidados ainda está sentada, como o Dr. Mário Gadelha que decide se levantar e olhar na direção à sua esquerda onde os vultos avançam lentamente até ganharem as formas de crianças, jovens, homens e mulheres, adultos e idosos todos usando camisolas hospitalares com seus rostos pálidos, faces emaciadas, olhos encovados e expressões de sofrimento, que avançam com vagar em direção aos convidados. A médica, com quem Mário conversara na chegada, começa a gritar e quando é controlada por um tapa no rosto, perde os sentidos e é amparada.

O Ortopedista olha para aquela visão de pesadelos e se lembra daquela série longeva de sucesso dos mortos-vivos, mas esses são diferentes pois quando os olhares se fixam, constatam que os corpos são diáfanos, quase translúcidos. Outro médico levanta e começa a correr em direção à porta de entrada, mas ao atravessar os corpos de três espectros tem uma espécie de convulsão e desaba inconsciente de bruços.

O cerco de centenas de espectros vitimados se fecha sobre os convidados em suas mesas vindos de todos os lados. O Dr. Mário Gadelha vê três espectros grandes se aproximarem e quando chegam à uma distância mínima, ele fecha os olhos e sente um grande arrepio de frio percorrer o seu corpo, com todos os pelos do corpo se eriçando e uma sensação de que o couro cabeludo vai ser arrancado do seu crânio. Mas logo isso passa e resta um travo amargo na boca antes de desfalecer. E assim acontece com todos os convidados, que paralisados de terror tem os seus corpos perpassados pelos espíritos e perdem os sentidos.

Quando todos os convidados estão inconscientes, o exército espiritual de vitimados pelo vírus desvanece no ar.

O Dr. Mário Gadelha acorda em sobressalto e suado. Vem sendo assim desde que saiu daquele encontro bizarro há uma semana. Nem lembra bem como chegou em casa, mas recorda que todos recuperaram as suas consciências e foram saindo do Salão em silêncio, menos um. Ainda tem flashes da imagem do Dr. Nunes caído e morto. O rosto contraído numa máscara de pavor. De acordo com a perícia foi um enfarto fulminante. O único óbito.

Desde o ocorrido não entrara mais no estúdio para produzir qualquer vídeo. E agora atirado em sua “bergère” com uma xícara fumegante de café, ouve também pela primeira vez desde então, o sinal do aplicativo do grupo.

É uma mensagem de áudio de um dos médicos mais ativos da causa, que comenta que está indignado, pois não há mais respeito aos mortos nesse país. Uma denúncia anônima levou a polícia até a casa do falecido Dr. Nunes, onde se descobriu um depósito oculto com um enorme estoque de hidroxicloroquina e ivermectina. Que absurdo conspurcar a memória de um profissional que fez tanto por eles, bradava ao final da mensagem.

Muitos “emojis” de concordância, indignação e tristeza surgem logo abaixo.

Por escrito, outro médico comenta que há dois dias tem demonstrado alguns sintomas fortes do vírus e soube de muitos convidados na mesma situação.

Vários integrantes do grupo afirmam o mesmo e um deles cria coragem e finalmente verbaliza em áudio a indagação de muitos:

- Será que fomos contaminados naquele pesadelo?

O Dr. Mário Gadelha larga o celular e solta um longo suspiro. Pensando bem, reconhece que acordara com alguma indisposição. Quando ergue a xícara na tentativa de beber o café, é obrigado a largá-la sobre a mesinha, pois é acometido de um forte acesso de tosse. Ao se controlar, constata que além disso está com alguma dificuldade para respirar. É então que um pensamento o invade acessando um escaninho, posto de lado, de sua mente. Ele se recosta, fecha os olhos e todas as oportunidades desperdiçadas para se vacinar, desfilam pela tela da memória.

Arte: Alice Santos             

João Luís Martinez    Alice Santos  



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