O poeta, o escritor e o elevador:
diálogos possíveis em um encontro desprovável
Lisboa. Uma data fictícia. Local idem, a gosto do leitor. Só tem o elevador de obrigatório.
Ele, o poeta, solitário e cheio de muitos eus.
Ele, o escritor, orgulhoso e descrevedor do seu lugar de nascença, com uma peculiaridade que só.
O elevador é a terceira margem.
- Bons dias, – diz o poeta – andar?
- Bons dias, o de número 3, por obséquio – responde o escritor.
Silêncios. O elevador inicia a sua trajetória. Porém, em um espaço de tempo mindinho ouve-se um barulho forte e a consequente imobilidade do mesmo. Olhares perplexos. O escritor adianta-se.
- Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa...
- O quê, por exemplo? – pergunta-lhe o poeta.
- De que estamos trancados – redarguiu o escritor.
Um assombro inominável tomou conta do poeta. Passou a caminhar de um lado a outro no pequeno espaço possível sem encostar no escritor. Algo começa a acontecer-lhe.
- Passas bem? – questiona o escritor.
- Elocubro que a vida é um novelo que alguém emaranhou. A solidão desola-me, mas a companhia oprime-me.
O escritor considera por um tempo as palavras do poeta.
- De fato, viver é negócio muito perigoso. Sei que o medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.
Um mal estar nasce em semente no espaço de entre os dois. Até que uma outra voz se faz presença.
- Senhores! Passam bem? Estamos providenciando auxílio técnico! Em breve poderão sair, pois sim?
Entreolham-se. Convencem-se de que terão a companhia um do outro por sabe-se lá quanto tempo. Talvez silêncios aqui sejam opressores. O escritor quebra o decoro.
- Esperar é reconhecer-se incompleto.
O poeta o observa incrédulo.
- Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo. – Completa o escritor.
- Pouco me importa. – Diz o poeta.
Mais silêncios impostos pelo poeta. O escritor não dá-se por vencido.
- Tudo é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
O poeta transfigura-se. Fica quase irreconhecível.
- Os poetas místicos são filósofos doentes, e os filósofos são homens doidos!
- Não sou filósofo, sou escritor. O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar.
O poeta remexe os bolsos. Alcança a mão ao escritor.
- Come chocolates.
- O quê?
- Não há nada mais metafísico no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. – Ele morde o seu chocolate. – Tudo é absurdo...
O som presente é o do mastigar das bocas, ávidas por um momento de calmaria. Existe tempo para a reflexão.
- Há pessoas que estão vindo muito demoradas, – refere o escritor – o que me consola é que o trágico não vem a conta-gotas...
- Já eu não aspiro a nada. Dói-me a vida. Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo... – Desabafa o poeta.
O escritor ajunta.
- Natureza da gente não cabe em certeza nenhuma. Fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente...
Passa instante, o rosto do escritor ilumina-se. Levanta de onde descansava. Dirige-se à porta do elevador.
- O que objetivas? – diz-lhe o poeta.
- A vida é feita de poucas certezas e muitos dar-se um jeito. Auxilia-me aqui.
Ao esforço do escritor une-se o poeta, tentando a liberdade forçada do casulo literário. Forças e suores mostram-se desperdício. A porta está travada.
- A força sem a destreza é uma simples massa. Serei sempre... o que não nasceu pra isso. – O poeta conclui.
A voz externa manifesta-se como onipresença, agora, secundada por outra.
- Senhores! Estamos trabalhando aqui! Cremos que em mais um quarto de hora estarão livres dessa situação constrangedora!
O poeta enerva-se, não parecido em nenhum pouco com aquele que entrou em companhia do escritor naquele lugar.
- Vão para o diabo sem mim, ou deixem-me ir sozinho para o diabo! – olha para o escritor – Por que haveremos de ir juntos? Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim!
Acaba sentando-se a um canto, em desolo entristecedor. O escritor aturava por tempo demais essas inconstâncias do poeta. Enervava-se também.
- Todos estão loucos nesse mundo? Mas quem é que sabe como? Viver...o senhor já sabe: viver é etcétera... O que vai fazer?
- A liberdade é a possibilidade do isolamento. Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. – Sentencia o poeta.
O mesmo abre um bloco de anotações e põe-se a escrever sofregamente, esquecendo-se do mundo ali.
O escritor o observa e suspira. Senta-se a outro canto, cansado, porém, resoluto.
- Quem muito se evita, se convive.
O poeta suspende a escrita. Levanta timidamente o olhar. Encara o escritor.
- Eu tenho do alto orgulho a timidez e sinto horror a abrir o ser a alguém, a confiar n’alguém. Horror eu sinto a que prescrute alguém, ou levemente ou não, quaisquer recantos do meu ser... Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha sensibilidade fatal.
O escritor percebe que desestabilizara o poeta. Encontrava aí uma possibilidade de convívio dialogatório.
- Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...
O poeta suspende o piscar dos olhos, encara o escritor e, inesperadamente, solta uma gargalhada nervosa. O escritor o acompanha na catarse.
- A alma humana é um manicômio de caricaturas! – Ri-se o poeta.
- Ninguém é doido. Ou então, todos. As coisas mudam no devagar depressa dos tempos. – Completa o escritor.
Desequilibram-se no trepidar do elevador. Finalmente este dá sinais de funcionamento e libertação. Seguram-se e ressentem-se, de certa forma, do encaminhamento final a que seguem desse breve encontro desprovável. Lamentam-se e rejubilam-se, experienciando um misto de alívio e saudade antecipada. As portas se abrem. Abrem-se os artistas, para dar lugar aos homens.
- Aqui, a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Muito prazer, me chamo João.
O poeta aperta a mão do escritor.
- Tudo que passa no onde vivemos é em nós que se passa. Muito prazer, este, que agora vos fala, é Fernando.
- Bons dias, – diz o poeta – andar?
- Bons dias, o de número 3, por obséquio – responde o escritor.
Silêncios. O elevador inicia a sua trajetória. Porém, em um espaço de tempo mindinho ouve-se um barulho forte e a consequente imobilidade do mesmo. Olhares perplexos. O escritor adianta-se.
- Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa...
- O quê, por exemplo? – pergunta-lhe o poeta.
- De que estamos trancados – redarguiu o escritor.
Um assombro inominável tomou conta do poeta. Passou a caminhar de um lado a outro no pequeno espaço possível sem encostar no escritor. Algo começa a acontecer-lhe.
- Passas bem? – questiona o escritor.
- Elocubro que a vida é um novelo que alguém emaranhou. A solidão desola-me, mas a companhia oprime-me.
O escritor considera por um tempo as palavras do poeta.
- De fato, viver é negócio muito perigoso. Sei que o medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.
Um mal estar nasce em semente no espaço de entre os dois. Até que uma outra voz se faz presença.
- Senhores! Passam bem? Estamos providenciando auxílio técnico! Em breve poderão sair, pois sim?
Entreolham-se. Convencem-se de que terão a companhia um do outro por sabe-se lá quanto tempo. Talvez silêncios aqui sejam opressores. O escritor quebra o decoro.
- Esperar é reconhecer-se incompleto.
O poeta o observa incrédulo.
- Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo. – Completa o escritor.
- Pouco me importa. – Diz o poeta.
Mais silêncios impostos pelo poeta. O escritor não dá-se por vencido.
- Tudo é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida?
O poeta transfigura-se. Fica quase irreconhecível.
- Os poetas místicos são filósofos doentes, e os filósofos são homens doidos!
- Não sou filósofo, sou escritor. O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar.
O poeta remexe os bolsos. Alcança a mão ao escritor.
- Come chocolates.
- O quê?
- Não há nada mais metafísico no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. – Ele morde o seu chocolate. – Tudo é absurdo...
O som presente é o do mastigar das bocas, ávidas por um momento de calmaria. Existe tempo para a reflexão.
- Há pessoas que estão vindo muito demoradas, – refere o escritor – o que me consola é que o trágico não vem a conta-gotas...
- Já eu não aspiro a nada. Dói-me a vida. Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo... – Desabafa o poeta.
O escritor ajunta.
- Natureza da gente não cabe em certeza nenhuma. Fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente...
Passa instante, o rosto do escritor ilumina-se. Levanta de onde descansava. Dirige-se à porta do elevador.
- O que objetivas? – diz-lhe o poeta.
- A vida é feita de poucas certezas e muitos dar-se um jeito. Auxilia-me aqui.
Ao esforço do escritor une-se o poeta, tentando a liberdade forçada do casulo literário. Forças e suores mostram-se desperdício. A porta está travada.
- A força sem a destreza é uma simples massa. Serei sempre... o que não nasceu pra isso. – O poeta conclui.
A voz externa manifesta-se como onipresença, agora, secundada por outra.
- Senhores! Estamos trabalhando aqui! Cremos que em mais um quarto de hora estarão livres dessa situação constrangedora!
O poeta enerva-se, não parecido em nenhum pouco com aquele que entrou em companhia do escritor naquele lugar.
- Vão para o diabo sem mim, ou deixem-me ir sozinho para o diabo! – olha para o escritor – Por que haveremos de ir juntos? Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim!
Acaba sentando-se a um canto, em desolo entristecedor. O escritor aturava por tempo demais essas inconstâncias do poeta. Enervava-se também.
- Todos estão loucos nesse mundo? Mas quem é que sabe como? Viver...o senhor já sabe: viver é etcétera... O que vai fazer?
- A liberdade é a possibilidade do isolamento. Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. – Sentencia o poeta.
O mesmo abre um bloco de anotações e põe-se a escrever sofregamente, esquecendo-se do mundo ali.
O escritor o observa e suspira. Senta-se a outro canto, cansado, porém, resoluto.
- Quem muito se evita, se convive.
O poeta suspende a escrita. Levanta timidamente o olhar. Encara o escritor.
- Eu tenho do alto orgulho a timidez e sinto horror a abrir o ser a alguém, a confiar n’alguém. Horror eu sinto a que prescrute alguém, ou levemente ou não, quaisquer recantos do meu ser... Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha sensibilidade fatal.
O escritor percebe que desestabilizara o poeta. Encontrava aí uma possibilidade de convívio dialogatório.
- Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...
O poeta suspende o piscar dos olhos, encara o escritor e, inesperadamente, solta uma gargalhada nervosa. O escritor o acompanha na catarse.
- A alma humana é um manicômio de caricaturas! – Ri-se o poeta.
- Ninguém é doido. Ou então, todos. As coisas mudam no devagar depressa dos tempos. – Completa o escritor.
Desequilibram-se no trepidar do elevador. Finalmente este dá sinais de funcionamento e libertação. Seguram-se e ressentem-se, de certa forma, do encaminhamento final a que seguem desse breve encontro desprovável. Lamentam-se e rejubilam-se, experienciando um misto de alívio e saudade antecipada. As portas se abrem. Abrem-se os artistas, para dar lugar aos homens.
- Aqui, a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Muito prazer, me chamo João.
O poeta aperta a mão do escritor.
- Tudo que passa no onde vivemos é em nós que se passa. Muito prazer, este, que agora vos fala, é Fernando.
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