MICROSCOPIA DO OLHAR

 


Isto não é uma escola


Este mês precisei comparecer na escola em que dou aulas de Arte para estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Sim, sou professora. E artista. E idealista. E pobre de dinheiro. Todos esses, adjetivos não gratos em uma sociedade capitalista. Ao pensar em escrever sobre o que encontrei naquele espaço físico, logo me veio à mente a obra “A traição das imagens”, do pintor belga René Magritte, na qual está escrito: “Ceci n’est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo). Ali, o artista reproduz a imagem de um cachimbo, e escreve logo abaixo, que não é um cachimbo. E, de fato, não o é. É a imagem de um cachimbo. O que é bem diferente de "ser" o objeto. 


Pois bem, eu entrei em um espaço físico que se diz ser escola. E, institucionalmente, o é. Mas, uma escola sem estudantes e professores, é um prédio qualquer. A alma da escola não está lá. Nesse sentido, isto não é uma escola. Recebi alguns materiais que passaram pela “quarentena”, para correção. Materiais de estudantes que não têm acesso às tecnologias digitais virtuais, tão celebradas em certos meios. Estudantes que quase não têm o que comer. Estudantes que só tinham a escola como refúgio social, de convivência, de alegria. Que acreditavam que talvez, e só talvez, pudessem sonhar com uma vida um pouquinho melhor. Hoje, nem dormem mais.


Caminhei pelos corredores vazios da escola vazia. Olhei para as câmeras. Ensaiei umas caretas. Os estudantes faziam isso. Observei as frases inscritas “criminosamente” nas paredes e classes. Juras de amor. Palavrões. Palavras ininteligíveis. Desenhos (alguns bons). Sentei na mesa do “professor”. Sala vazia. Só o barulho do ventilador de teto, fazendo circular o ar estéril das risadas deles. Dos barulhos juvenis. Não consegui mexer de imediato no material. Tive que dar uma volta na sala assustadoramente silenciosa. Tocar nas mesas e cadeiras. Tocar nas lembranças da presença. Naquele momento, meu coração apertou. Esse ano foi o primeiro ano que eu chorei no dia dos professores. Ainda não sei explicar o porquê. Só sei que doeu. Doeu a falta da convivência com eles. Doeu colocar a mão na tela do computador pra alcançar os sorrisos e abraços virtuais, que antes eram tão fartos, e que muitas vezes eu negligenciava. Só damos valor a algo depois que perdemos. Nunca um ditado foi tão correto.


Fez falta a gritaria. Fez falta mandar o Murilo sentar. Fez falta dizer para a Mariana virar pra frente e parar de conversar com a Pietra. Fez falta dizer para o Gabriel guardar o celular… “era só pra ver a hora, sora”. Fez falta as mentiras ingênuas também. Só faz falta pra quem vive diariamente essa rotina. Ou vivia. Olho pra mim no espelho do banheiro. Isto ainda é uma professora?


Não sei se vou reencontrá-los. Não sei quantos voltarei a ver. Tantas rupturas aconteceram esse ano. Brutais e inimagináveis. Aquela escola do início de 2020 morreu. Algo ainda está vivo em algum lugar. Uma semente, um gérmen. Algo que eu também não sei nominar, mas é o que eu, como professora, artista, idealista, desejo e luto, dentro das minhas possibilidades, para que cresça, crie raízes mais democráticas, mais rizomáticas, mais equitativas. Não é sobre a instituição escola. É sobre educação, no seu sentido mais genuíno e de valor. Isto não é educação. Mas pode ser.


Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS, Gestão Cultural pelo SENAC-RS, e Língua, Literatura e Ensino pela FURG; Graduada em Teatro - Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em Pedagogia do Teatro, em especial sobre Mediação Teatral, e escrita criativa. Membro fundador do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.

Patrícia Maciel



  

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7 Comentários

  1. Lindo texto!!!! Um depoimento sensível de uma educadora que acredita que a ação da educação é transformadora!! Parabéns, Pati!!😘

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    1. Gratidão pela acolhida! Gostaria de, em poucas palavras, tentar traduzir um pouco do sentimento que perpassa em nós, professores! ❤️

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  2. Patricia, me identifiquei com seus sentimentos lendo o depoimento. E chorei! Muito! Pq tenho esta mesma sensação de não reencontrar as mesmas pessoas num futuro, próximo ou não. Ou encontra-las diferentes. Tudo mudou neste ano de 2020. Inclusive eu! Fiquei mais fatalista, à mercê de o que será que virá amanhã e um tanto desesperançada. Não é isso que sou e não quero ser. Trabalho num projeto que oferece Espetáculos Teatrais para as Escolas. Agora vc entende o pq de minha identificação? Cadê a Cultura para esta criançada isolada, cadê suas risadas entrando e saindo do Teatro? Cadê suas intervenções durante os espetáculos? Cadê essa alegria coletiva? Muita falta, muita saudade de nossa vida normal de pré pandemia. Abraços.

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    1. Que emocionante saber desse teu relato...e sim, não há como não sentir falta de tudo isso. Que toda essa reconstrução que estamos sendo obrigados a fazer nos traga algo muito melhor do que tínhamos, com mais risadas e sorrisos cheios de esperança de crianças e jovens. Um grande abraço e obrigada pelas suas palavras! <3

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  3. Que reflexão! Sentimentos expressados em palavras... Parabéns professora, artista e ser humano sensível por esta excelente reflexão!

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  4. Quase chorei lendo o texto, emocionante! Parabéns Patricia.

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