MICROSCOPIA DO OLHAR

 


Carta aos que virão (atemporal)


O ano é agora. Como seres humanos, somos constante ameaça a nós mesmos. Desde tempos imemoriais somos assim. Não, não é minha intenção transformar essa missiva em um repositório de pessimismo com a humanidade. Na verdade, a ideia é dialogar com os leitores sobre a essência da permanência.


Talvez essa carta encontre como destino a lata de lixo, o esquecimento, ou até mesmo o fogo, virando cinzas. Palavras transformadas em vazio. O que permanece então? Tenho uma teoria.


Cada pensamento voador, apreendido do ar e transformado em matéria através da impressão no papel ou em outro suporte se torna fisicalizado, submetido à dor da prisão no mundo sólido. Enquanto voador, ele não é de ninguém. É livre, mas desconhecido. Ao ser captado por mentes caçadoras, porém gentis, ele sente o seu processo de transformação interna, passando por um intrincado mecanismo de formatação, compressão e organização (nem sempre nessa ordem). Encontra pensamentos outrora voadores. Entende, por fim, que o seu destino é servir a algum propósito maior, do qual não tem como fugir.


Voou muito tempo livre por aí. Sem objetivo traçado, deixou-se levar ao sabor da direção indefinida. Uma massa sutil, fluida, dispersa, inútil. A permanência ocorre no nascimento do pensamento enquanto coisa, materialidade que é comunicada para mim, para você, e para quem mais esteja disposto a compreendê-lo.


Esta carta tem, portanto, a intenção de ser permanência. Não pelo que lhes contei do processo de transformação do pensamento-voador para pensamento-coisa, mas pelo fato de dialogar e imprimir-se de tal maneira na essência, que ultrapasse qualquer pretensão de teoria temporal.


A humanidade, como comecei a expor nessa carta, é uma ameaça a ela mesma. Principalmente quando deixa de caçar os pensamentos voadores. Até porque eles, por si só, não entram na dicotomia do bom e mau (lembrem do processo de transformação da minha teoria). São metamorfos, e somente colaboradores da caminhada humana.


São muitas complexidades detalhadas em uma manhã cinzenta de outono. Pedirei licença agora, pois alguns danadinhos passam pela minha janela mostrando-me a língua, e rindo feito crianças travessas. Vou tratar de buscar suas permanências.



Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS, Gestão Cultural pelo SENAC-RS, e Língua, Literatura e Ensino pela FURG (em andamento); Graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em Pedagogia do Teatro, em especial sobre Mediação Teatral, e escrita criativa. Membro fundador do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.




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