LANCEIRINHO NEGRO, O HERÓI
QUE TODOS PRECISAMOS
Quando eu era garoto nos primeiros anos de minha vida escolar vivíamos os últimos anos da ditadura militar e ainda existiam muita coisa de um ufanismo que era programado em nossas mentes, de um produção de heróis e mitos (e hoje sabemos bem aonde "mitos" podem nos levar) que tinham a intenção de inflar nosso "peito patriótico". Mesmo que no inverno rigoroso nós não tivéssemos roupas apropriadas para suportar o frio, tínhamos que estar perfilados para cantar os hinos do Brasil e do Rio Grande do Sul. Em setembro, todos nós comemorávamos à exaustão a Independência do Brasil e a Revolução Farroupilha e dos seus "bravos heróis, seus feitos e conquistas" .
Demorei anos para a desconstrução da programação, para entrar em contato com obras de pesquisadores que trouxeram verdadeiros fatos para a luz da história e para conhecer os lanceiros negros e a traição de Porongos. Das verdades por trás de uma guerra civil liderada por estancieiros, que nunca tiveram em seus ideais a abolição da escravatura como nos contavam na escola.
Também me ajudou na busca pela compreensão e pela verdade o fato de meu filho mais velho, Jordão, ser negro. Eu vi o preconceito que ele sofria em todos os lugares, desde uma ida ao mercado, até dentro da escola, quando os colegas o deixavam de lado. Uma vez ele me perguntou por que não haviam livros infantis e histórias em quadrinhos com meninos negros, heróis negros, e isso me fez procurar e revirar locais para encontrar títulos que trouxessem o negro como protagonista. Certa feita, criei um personagem de quadrinhos que era o Gato Negro, para que ele se identificasse. Hoje ele tem 27 anos, um homem que me dá muito orgulho. Falei com muita alegria para ele sobre o Lanceirinho Negro, da Angela Xavier.
Conheci a Angela primeiramente pelas palavras de Waldemar Max e do Jackson Reis (figuras importantíssimas da cultura da cidade de Gravataí/RS), que me falaram do trabalho engajado da Angela. Eu teria que conhecer ela e o seu trabalho, pessoas assim me fascinam. Em um sarau que o ColetiveArts promoveu no instagram, ela foi uma das convidadas pela Cris Bastianello. Nunca mais a perdi de vista. Quando ela lançou o Lanceirinho Negro e o Lanceirinho Negro - herança de Porongos, confirmei que estava diante de uma pessoa diferenciada. Então fui conversar com ela, e trago abaixo as palavras desta mulher forte que vem fazendo a diferença na cultura do Rio Grande do Sul. O Lanceirinho Negro é o herói que todos nós precisamos, que traz a representatividade, que faz a criança negra se enxergar, assim como o filme Pantera Negra fez.
Com vocês, Angela Xavier:
Jorginho: Como surgiu a ideia de abordar o tema dos Lanceiros Negros? Fale um pouco desse teu lindo projeto.
Angela Xavier: A temática dos Lanceiros Negros me foi apresentada por uma aluna em uma turma de Educação de Jovens e Adultos. Eu tinha 25 anos, iniciando minha trajetória no Magistério, quando preparei um planejamento sobre a Revolução Farroupilha. Era uma noite fria do mês de setembro, quando a jovem professora recebeu a melhor aula de toda sua trajetória acadêmica. Tinha planejado apresentações em grupo, quando uma jovem aluna me surpreendeu, questionando sobre o porquê de celebrar uma data tão sangrenta. E com uma fala potente me relatou tudo o que soubera através de seus ancestrais.
Foi quando a professora viu todo o seu planejamento, repleto de datas e “vultos" históricos, sendo questionado, jurou naquela noite modificar suas práticas e sempre questionar os livros didáticos.
Depois do acontecido,a temática dos Lanceiros Negros sempre era abordada durante a Semana Farroupilha em minhas turmas. A responsabilidade era grande, não aceitando mais compactuar com a invisibilidade imposta ao nosso povo pelos livros didáticos. Minhas práticas sobre o tema se intensificaram, e em 2018, tendo uma turma de primeiro ano, participei do Festival Estudantil de Teatro de Gravataí, apresentando a esquete Lanceiros Negros e sendo contemplada com o troféu Desconstrucão da História Oficial, ainda no mesmo ano, conclui uma especialização tendo a temática como título do artigo.
Em 2019 ,como uma turma de Educação infantil pela manhã, decidi trabalhar a temática com os pequenos através da literatura. Utilizando o lúdico escrevi o conto infantil O Lanceirinho Negro, uma obra que fala sobre um menino profundamente apaixonado pela história dos Lanceiros Negros, conhecida através dos relatos de seus avós. A proposta ,que inicialmente contemplava a educação infantil, ganhou proporções surpreendentes atingindo as séries iniciais da escola em que trabalhava. Graças ao incentivo de amigos e amigas o livro já era uma realidade.
O ilustrador Daniel Silveira, esposo de uma grande amiga, embarcou na proposta ,e de forma voluntária deu vida ao personagem. A obra foi apresentada ao público em outubro de 2019,durante a Feira do Livro do município com o apoio do Clube Literário de Gravataí.
No ano de 2020,em isolamento por causa da pandemia, lancei um projeto ousado, disponibilizei a obra em “pdf” para todo o Rio Grande do Sul ,compartilhei em minhas redes sociais e nos coletivos que faço parte: Coletivo Profes pretas e Educação antirracista do Rio Grande do Sul. Educadoras comprometidas com a luta contra o racismo estrutural multiplicaram a obra e ela atingiu todo o estado. Até hoje escuto maravilhosos relatos sobre práticas envolvendo o Lanceirinho Negro.
O ano de 2021 promete muito trabalho. Costumo dizer que o guri é atrevido, pois quando pensava em me envolver em novos projetos ,eis que o mesmo é contemplado pelo edital da Fundação Marcopolo ,com recursos da lei Aldir Blanc n ° 14.017/2020.Protagonismo negro na construção da história do Rio Grande do Sul é um projeto que visa trabalhar com quartos anos a temática dos Lanceiros Negros, utilizando como estratégia a literatura e como ferramenta o conto infantil O Lanceirinho Negro nas redes municipais de Glorinha, Gravataí e Porto Alegre. Temos uma equipe potente, composta pelos ilustradores Daniel Silveira e Waldemar Max, pelo estudante de jornalismo e militante da causa negra William Freitas, pela maravilhosa professora Michele, pela estudante de Marketing Julia Refosco e com participação mais que especial do Operário das Artes Sirmar Antunes. Um projeto potente que visa dar representatividade às nossas crianças e combater o racismo estrutural. O Lanceirinho Negro servirá de mediador ,resgatando o protagonismo negro desde cedo, empoderando nossos pequenos e contribuindo para a valorização da nossa ancestralidade.
Angela Xavier: É uma questão bastante delicada. Existe uma dívida histórica com a população negra deste estado. É fato! Durante muito tempo os livros didáticos ignoraram nossa participação na construção da história do Rio Grande do Sul. O movimento Farroupilha foi romantizado, criando-se todo um imaginário com o intuito de atender aos caprichos da classe dominante. A traição de Porongos é uma ferida aberta, um massacre cruel e vergonhoso para nossa história. Nós, enquanto negros e negras, temos a obrigação de abordar o tema,resgatar nosso protagonismo, empoderando nossos pequenos e precisamos do apoio da sociedade em geral para atingir nosso objetivo.
Jorginho: Angela fale um pouco do racismo na sala de aula, do racismo nas instituições, do racismo no meio editorial, você acha que estamos tendo avanços ou retrocessos?
No meio editorial vejo com satisfação o surgimento dos coletivos, eles possibilitam nosso aquilombamento, nos fortalecemos uns nos outros. Acompanho com satisfação o surgimento de editoras comprometidas com a negritude e fico mais esperançosa.
parceria.
Jorginho |
2 Comentários
Belo! ótima entrevista, como têm sido todas às quais venho acompanhando ... assisti a este projeto pelo youtube e venho acompanhando o desenvolvimento deste grandioso projeto, envolvendo pessoas tão queridas e talentosas ... que reflexões! e são atemporais, discussões que serviram no passado, servem hoje e continuarão em pauta no futuro!
ResponderExcluirGrata por prestigiar nosso projeto!
ExcluirAgradeço em nome da nossa equipe! Na luta, sempre!