O desenhista que no trem se apaixonou pela poetisa
Ele levava sobre os ombros a mochila com sketchbook e o lápis de estimação. Ela levava os sonhos que deitava sobre o diário companheiro de adolescência. Na estação de trem um olhar distraído, que se cruza e se demora. Ele percebe luz e sombra, mistério e doçura. Ela percebe olhar e luz, e o mundo inteiro dentro de um sorriso.
No trem que chega, a pressa pelo mesmo vagão. Os dois rabiscam coisas no seu mundo particular, na ânsia do registro do outro para não esquecer mais. Ele, os traços precisos possíveis em olhares furtivos; ela, toda a poesia possível no ato do desenhador (que é a mistura de desenhista com sonhador). Avessos à rotina do entrar e sair de gente, apenas se memorizam, na urgência do caminho que a qualquer momento pode se acabar. O medo do desenhador de perder a inspiração. O medo da poetisa de perder o escrevinhar.
Com um breve rascunho do vir a ser, se despedem com a esperança de mais. No sketchbook, o traço do desejo. No diário, a palavra do encantamento. Nos dois, a vontade de epílogos originais. Mas o destino, esse atrapalhado ermitão, não permite que o amor seja assim tão fácil, constrangendo o desenhador a buscar na memória a presença da poetisa no papel, já que, no trem, ela não tem presença mais. O desenho se torna agora traços de saudade, presentificando-se em cada vagão com o perfil da poetisa amada, na busca empenhada por mais um olhar para dar fim à obra inacabada, e a um coração descolorido.
Nas frases que descrevem um certo desenhador viajante, a poetisa extravia-se em divagações e descaminhos. No seu estar inconstante perde-se do trem e mergulha nos sons das palavras sem fim, deixando de pensar na realidade imediata da vida. Percorrendo a estação, percebe que o trem alcoviteiro já tinha rumado para outras paragens, talvez levando aquele que era o motivador da sua poesia. E ali mesmo, no meio fio, planeja as palavras do reencontro. Ela elabora, em frases simples e pessoais, o perfil do desenhador, distribuindo pela estação um singular "procura-se", que só aquele, alvo do seu encantamento, poderia reconhecer.
Passa o dia, e ao desenhador falta o traço, porque o traço ficou nela. À poetisa falta a rima, a coesão, a lira, pois a palavra ficou nele. Percebem a solidão artística e se questionam: "Será que ainda há lugar para o amor? É possível furar a bolha da fugacidade?
Na passagem da noite tardia que ousa provocar a angústia inerente aos dois sensíveis, o tempo é vácuo, delgado, mas transponível. O dia vem. O trem chega. O desenhador marca a estação com a imagem de alguém que talvez fosse ilusão. No mural, algo lhe chama a atenção. Versos curiosos e enigmáticos. A esfinge lhe atrai.
"Se por ventura (ou não) aqui passar aquele que cria sonhos com o lápis e foi capaz de roubar minha poesia, favor trazê-la de volta nesse mesmo tempo e lugar. Por acaso, no ocaso, eu aqui irei estar."
Um misto de alegria e vergonha percorre o corpo do desenhador. "Sou um ladrão! Tenho o dever de devolver o tesouro!", pensou. E a esse sentimento seguiu-se a inspiração. Ágil com seu lápis, o desenhador traça num mapa o encontro do traço com a palavra, que transpassa o limite endurecido da razão.
Ele espera o ocaso como quem observa o casulo romper-se com a surpresa esperada do surgimento da borboleta. Aqui, o tempo revela-se expectativa e verdade a quem achava que fosse bom demais para ser real a possibilidade de amar algo além do desenho.
O ocaso vem. O trem chega. E, junto com ele, todas as cores e todas as linhas que delimitam (ou extrapolam) aquela poetisa que no desenhador se fez marca tatuada. A poetisa, por sua vez, reencontra a palavra perdida no sorriso pleno do desenhador,
eximindo o mundo da culpa das improbabilidades.
O vagão se torna casa, jardim e alcova, colaborando com mais uma história idealizada de amor.
Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS, Gestão Cultural pelo SENAC-RS, e Língua, Literatura e Ensino pela FURG (em andamento); Graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em Pedagogia do Teatro, em especial sobre Mediação Teatral, e escrita criativa. Membro fundador do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.
03 ANOS DE COLETIVEARTS
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3 Comentários
Adoro essa história e esse casal
ResponderExcluirQue texto maravilhoso! Que belo encontro, o traço com a palavra, marcando aí uma bela historia de amor ... lirismo, poesia, paixão, bom gosto ... excelente!
ResponderExcluirQue poema, que relato, que conto, por tudo que é mais sagrado, que esse lindo amor perpetue por toda a eternidade, parabéns por vocês...
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