TECITURA


 Lembranças: Borba Gato



Domingo, vinte e cinco de julho de dois mil e vinte e um ... um dia qualquer, nem tanto frio porém ensolarado, dia de inverno aqui, no RS. Era por volta de meio dia e quarenta, e eu, preparando o almoço e escutando a rádio Gaúcha – sou daqueles que escutam muito às rádios – deparei com a notícia sobre atos de vandalismo ocorrido em São Paulo, mais precisamente no bairro de Santo Amaro e à estátua de Borba Gato. Imediatamente viajei no tempo, dei um pulo temporal (parecia estar na série Loki ou no filme Tenet), minha mente vagou neste momento aos anos de 1984 a 1987, período em que, junto à minha família, mudamos para esta cidade devido ao trabalho de meu pai, que havia sido contratado pela Santa Casa de Santo Amaro – meu pai era eletrotécnico.

Uma ruptura de pensamentos e conhecimentos, hábitos, amizades e cultura ocorrera para todos os membros de minha família. Eu senti um impacto muito grande; desde a pré-escola na mesma instituição, colegas que faziam parte de meu universo, meu círculo social. Meus irmãos, com certeza, sentiram o mesmo impacto. Fomos muito bem recepcionados, minha tia-avó reside até hoje na mesma residência, esta parte da família de minha mãe possui alguns imóveis em São Paulo, e cederam uma de suas casas para nós. Meu irmão sempre teve muita facilidade para se ambientar, fazer amizades, e criar laços com nossos primos mais jovens, crianças como nós, foi rápido; Roseli, Marquinhos, Fabi ... que lembranças destes primos ainda crianças!

Borba Gato ... qual razão de despertar estas lembranças? A estátua de Borba Gato era, para nós, que pouco conhecíamos a cidade e estávamos nos ambientando a ela, um ponto de referência. Colocada na saída de uma galeria que levava o mesmo nome, em seu entorno fica a Av. Santo Amaro, a Av. Adolfo Pinheiro, o Largo Treze de Maio, o mercado público de Santo Amaro, Cemitério Municipal ... pontos de referência importantes, na Rua Adolfo Pinheiro estava a escola em que eu e meus irmãos estudamos, a Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio Linneu Prestes ... o Colégio Radial também ficava próximo, escola técnica que tinha o curso de eletrônica ao qual eu sonhava em cursar no ensino médio. Largo Treze era local de trânsito intenso e comércio variado. Para quem não conhece, São Paulo tem vários centros, não um só como ocorre com Porto Alegre e outras cidades. Lá, há bairros com população maior que a maioria das cidades do país, e Santo Amaro é um deles. Largo Treze seria seu centro; encontrava um mundo de possibilidades, desde o comércio de rua, galerias, feiras, cinemas, biblioteca, um centro esportivo extraordinário que atendia à comunidade. Era a época dos fliperamas! Nada de jogos por computador, internet nem pensar! Os fliperamas eram a onda do momento, os cortes de cabelo New Wave, as calças bag e semi-bag, tênis Le Cheval. Enfim, um universo rico de recordações, uma simples reportagem despertou uma viagem maravilhosa ao passado.

Voltando ao teor da notícia, houve protestos e manifestantes atearam fogo à estátua de Borba Gato. Pelo que li, um movimento chamado Revolução Periférica assumiu a autoria do incêndio, atraindo atenção de pessoas que se mostraram favoráveis e tantas outras, contra o ato praticado. Um dia antes do incêndio e ampla divulgação deste nas redes sociais, cartazes foram espalhados pela cidade com a frase “Você sabe quem foi Borba Gato?” A primeira observação que fiz sobre os fatos foi de que a sociedade, ou uma parte dela, está se inteirando, tomando consciência histórica e revisitando o passado, revisando seus heróis, seus mitos, suas crenças. Borba Gato alcançou status de herói na cultura e imaginário popular paulistano de uma outra época, em que não se dava muita importância ou não se pensava nas injustiças feitas a populações inteiras. Como Bandeirante Paulistano – os Bandeirantes foram  exploradores empreendedores de expedições que desbravaram os interiores do Brasil colonial – Borba Gato teve papel importante na formação do estado de São Paulo e suas cidades, alcançando a alcunha de herói para muitos, sendo reverenciado pelo governo, homenageado com estátuas, nome de logradouros públicos e presente nos livros didáticos e que falam da história do estado de SP e do Brasil. Mas há o outro lado. Há o outro ponto de vista, sob a óptica daqueles que foram massacrados por Borba Gato e pelos Bandeirantes. Segundo historiadores, Borba Gato e os Bandeirantes foram responsáveis por escravizar índios e negros, caçar homens para fins de escravidão, foram responsáveis pelo massacre de etnias inteiras.

Talvez este episódio seja um marco. Sou contra o vandalismo, a depredação, porém este ocorrido demonstra claramente a insatisfação existente em relação ao contexto sócio-político e cultural atual. Em tempos de pós-verdade, esta preocupação em revisitar o passado e rever conceitos mostra-se como um sinal de empatia ao próximo. A preocupação em demover da adoração popular um personagem que, apesar de sua contribuição para a construção de uma sociedade, a fez sob o ato de subjugar o mais fraco, o indefeso, povos massacrados pelo preconceito e status de inferioridade imposto pelos colonizadores, configurando suas ações não como atos de heroísmo, de bravura, mas o contrário disso, atos de covardia!

Hoje estamos, como sociedade, engajados na luta pela igualdade, pelo tratamento igualitário entre homens e mulheres, etnias, orientação sexual, pelo combate às formas de preconceito e ao racismo estrutural, fazendo desta notícia um reflexo das novas ondas sociais, de um pensamento que não aceita mais as intolerâncias e o desrespeito ao outro, que enxerga como necessidade a revisão histórica de atos praticados e o resgate necessário, que está abrindo seus olhos quanto aos populismos exacerbados, à criação de “Mitos”, à interpretação incorreta dos fatos que constroem nossa história diária, à superficialidade de pensamentos e opiniões, à criação de estigmas e estereótipos, principais causadores de preconceito.

E quanto ao meu passado ... em 1987, voltamos (eu e minha família) a Porto Alegre, nossa cidade natal. Finalizei o ensino fundamental lá em São Paulo, e realizei aqui em Porto Alegre o sonho de estudar eletrônica, cursando o antigo segundo grau “profissionalizante” na Escola Técnica Parobé, adquirindo uma profissão que desempenhei por 24 anos. Com o tempo a internet ganhou força, novas tecnologias evoluíram, e o contato com nossos parentes paulistanos se tornaram viáveis via redes sociais. Acompanho sempre a Roseli, hoje Li Couto, bartender, Sommelier e artista plástica, morou na Lapa (Rio de Janeiro) e recentemente retornou a “Sampa”. Revivi as lembranças de infância com o reencontro dos meus primeiros amigos, colegas de pré- escola até a sexta-série, reencontro proporcionado através das redes sociais ... e a minha primeira ‘amiguinha” feita na pré-escola no Instituto Maria Auxiliadora (IMA), sempre muito viva, inteligente, desde criança um prodígio, a Letícia, anos depois passou a escrever livros, e um deles obteve especial êxito, leram muito, chamou a atenção de uma rede de televisão e adaptaram para este meio, intitulado “A Casa das Sete Mulheres”





Sandro Ferreira GomesProfessor de Língua Portuguesa, Conselheiro Municipal de Políticas Culturais em Gravataí/RS, Servidor Público, Porto Alegrense, admirador das belas artes, do texto bem escrito e das variedades de pensamento.

Sandro Gomes
















03 ANOS DE COLETIVEARTS
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