ARTE E CULTURA




PEDRA MENINA - O MORRO ITACOLOMI EM CENA


Em 1999 fui morar em Gravataí, próximo ao centro e o bairro Aldeia dos Anjos, Era uma casa que havia sido um armazém, no ano seguinte nasceu meu primeiro filho,  Peter Luís. Fui inquilino de uma casal de idosos afrodescendentes, cuja pele de ébano, que era tão linda, contrastava com os seus cabelos brancos como algodões.  Eles traziam consigo uma sabedoria ancestral, daquelas bem gostosas que marcam a gente para o resto da vida, daquelas de falar sobre ervas, chás, benzeduras, causos  e lendas. Ele chamava-se Darci, ela se chama Anália.

Foi dona Anália quem benzeu meu filho para sarar do cobreiro  e para proteger do mau olhado; foi seu Darci que me contou sobre os primeiro moradores do bairro, sobre as dores e amores das pessoas que ali viveram, e foi ele a primeira pessoa a me falar sobre as lendas do Morro do Itacolomi.

"Lá é assombrado, Jorge!", dizia ele, com os olhos bem arregalados e mostrando o braço todo arrepiado. Me contava que quando moço subira até lá para caçar com os irmãos, mas não podia ficar por causa da assombração que rondava o acampamento. Ele dizia que haviam visto um vulto na escuridão e gritos, nunca mais quis botar os pés lá durante a noite. Confesso que toda vez que passei pelo Morro me lembrava da história de seu Darci, e que certa vez de carro me arrepiei todo e fiquei com medo de enxergar a assombração.


A quem interessar, dona Anália curou o cobreiro do Peter com ervas, orações e gestos místicos. Hoje, bem idosa, ainda reside no mesmo lugar. Seu Darci, meu pai preto que eu beijava e pedia a benção, faleceu esse ano, mas sempre que nos encontrávamos, ele contava seus causos como se fosse a primeira vez, e esse do Morro do Itacolomi era sempre presente. Ele mostrava o braço arrepiado e dizia: "olha aqui Jorge, meu braço não me deixa mentir, lá é assombrado sim senhor!".

Tenho certeza que se ele tivesse olhado o filme em curta metragem  Pedra Menina, iria dizer "viu como é verdade?". Se encontrasse com a Camila Tauchen, com a Ketelyn Scrittori  ou com a Giuliana Heberle, as diretoras deste curta que narra as lendas deste lugar mágico, deste lugar lindo que está no imaginário do povo gravataiense, ele mostraria o braço e confirmaria: "viram meninas? fiquei arrepiado só de saber que vocês estiveram lá, lá é assombrado!"


PEDRA MENINA é um Curta-metragem que narra as histórias e lendas que cercam o patrimônio natural de Gravataí, misturando performance artística e relatos da população local. Símbolo de Gravataí, o Morro Itacolomi ganhará um filme sobre suas histórias e lendas. O curta-metragem Pedra Menina foi contemplado pela Lei Aldir Blanc do município e estreia em outubro. Com direção coletiva de Camila Tauchen, Ketelyn Scrittori e Giuliana Heberle, o projeto busca fortalecer a relação dos moradores de Gravataí com o morro representado em seu brasão, fazendo ecoar o conhecimento popular sobre o Itacolomi e registrando de forma perene a memória da cidade. O título do filme foi inspirado no próprio morro, "Itacolomi" significa “menino de pedra”, em tupi-guarani.

Na narrativa, uma protagonista explora o Morro Itacolomi, instigada pelos mistérios que rondam o lugar. Lá, as lendas contadas pelos moradores da região ganham vida e movimento a partir de três personagens interpretados por uma atriz e performer. Segundo essas histórias, o casarão situado no topo do morro teria sido construído na época da Segunda Guerra Mundial por dois alemães fugitivos. Com a descoberta do esconderijo, o local supostamente teria se transformado em um bordel e, após, teria sido comprado por um médico. Entendendo as lendas como narrativas fantásticas que intensificam fatos históricos, Pedra Menina deixa a pergunta: qual o limiar entre o que realmente aconteceu e o que circula entre as gerações de moradores da região? Além de preservar a memória da cidade, o curta-metragem também tem um propósito fundamental: sensibilizar a população sobre a importância ambiental do Morro Itacolomi. Trata-se de um dos raros pontos do Rio Grande do Sul onde ainda é possível encontrar Mata Atlântica, considerada o bioma mais ameaçado do país, com apenas 12% da vegetação original conservada. 


No Itacolomi, a Mata Atlântica constitui a vegetação predominante. O Morro abriga ainda cinco cursos d’água, afluentes das sub-bacias do Rio Gravataí e do Rio dos Sinos. Já a fauna da área é constituída por mais de uma centena de espécies - entre aves, répteis e mamíferos. O Instituto CAAPORA - Cultivar, Preservar e Regenerar a Natureza, fundado pelas proprietárias de 157 dos mais de 300 hectares do Morro Itacolomi, estuda a possibilidade de transformar a área delas em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Tal categorização facilitaria a organização de atividades como proteção de recursos naturais, desenvolvimento de pesquisas científicas e manutenção ecológica das Áreas de Preservação Permanente (APP). 

Ao longo das próximas semanas, o público poderá acompanhar no Instagram @filme_pedramenina os bastidores da produção do curta-metragem, além de informações sobre o contexto atual do Morro Itacolomi. Para garantir a acessibilidade do conteúdo, todo material divulgado na página terá legendagem audiovisual com o uso das hashtags #Acessibilidade #PraCegoVer e #PraTodosVerem.
 
Nós, do Arte e Cultura, somos apaixonados por Gravata/RS (cidade sede do Coletive), apaixonados pelo morro Itacolomi e aproveitamos para conversar com as diretoras responsáveis pelo curta PEDRA MENINA.
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JORGINHO: Como surgiu a ideia de fazer um curta sobre o Morro Itacolomi?

KETELYN SCRITTORI:  Um ano atrás, mais ou menos, eu tive um compromisso em Morungava e, ao voltar para casa de Uber, passei em frente ao Morro Itacolomi na RS-020. Durante o percurso, o motorista do Uber começou a falar sobre umas lendas que existiam a respeito do lugar: que tinha um casarão lá no alto que havia sido construído por fugitivos nazistas, que o local também havia sido um bordel e que as mulheres sumiam na cidade e, dizia-se, iam pra esse bordel, coisas assim. Chegando em casa, fui buscar na internet algumas informações a respeito e vi que existiam algumas notícias que davam conta do que o motorista do Uber havia me dito antes. Mais do que querer saber se as histórias eram verdadeiras ou não, me encantou a ideia de fabulação que rondava o Morro - um imaginário popular calcado numa linguagem oral que sobrevivia ao longo das gerações. Quando abriram os editais emergenciais de cultura da Lei Aldir Blanc em Gravataí, ainda no ano passado, convidei mais duas amigas para contarmos as histórias do Morro através de um curta-metragem, a Camila e a Giuliana, cada qual contribuindo com sua área e seus olhares, e aí fechamos o trio feminino que dirige o filme. Além disso, eu sempre morei em Gravataí próximo à RS-020 e, andando de bicicleta frequentemente na Faixa de Taquara, sei o quanto o Morro é imponente na paisagem do lugar. A presença do Morro para toda a região metropolitana é muito importante, não só em termos de beleza, fato inquestionável, mas sobretudo em termos de preservação ambiental. É urgente que cuidemos da mata que ainda nos resta e que, enquanto sociedade, a gente desenvolva uma consciência ambiental mais séria. Com nosso filme, queremos fortalecer a relação dos cidadãos com o Morro, mas também trazer respiro e vida ao Morro Itacolomi sob um viés ambiental.

KETELYN SCRITTORI

JORGINHO:  Estar no morro, filmando sobre essas lendas que povoam o imaginário popular, chegou a mexer com vocês em algum momento?

CAMILA TAUCHEN: Sim, eu diria que em todos os momentos, desde a chegada, quando ainda na estrada RS020 vimos o morro despontar na paisagem. Tudo foi muito especial. Além de ser um lugar lindo por si só, essas lendas que tivemos contato ao longo do processo de preparação para as gravações tornaram nosso contato com o morro ainda mais significativo. A sensação foi de muito respeito e admiração pelo morro, por sua natureza e pelas histórias que ainda abriga. Outro ponto marcante foi a forma como o tempo se comportou durante os 4 dias em que estivemos lá. Pegamos sol e chuva, frio e calor. Em um dos dias, que pareceram semanas, amanhecemos com o morro coberto por uma espessa neblina branca, que ajudou a potencializar a aura mágica do lugar. E o melhor de tudo é que o roteiro incluía exatamente isso, neblina, sol e chuva. Quem lia sempre perguntava como diabos faríamos aquilo. Nem a gente sabia, mas no fim deu tudo certo. Até brinquei que a roteirista tinha algo de bruxa.

GIULIANA HEBERLE: Nossa, sim! Teve uma cena que a gente foi filmar e quando cortou eu estava com os olhos transbordando, aí fui olhar pra Camila e ela só me olhou e disse: chorei. Foram várias sensações, inclusive a de interação social que a gente não teve durante todo o processo de desenvolvimento e pré-produção, tudo foi muito intenso nos dias de gravação no morro. Essa cena em específico nos tocou porque aborda uma questão bem profunda sobre a história das mulheres, não só ali no morro, mas que se repete em diversas regiões no mundo. Quando escrevi o roteiro, essa lenda reverberou em mim e já ficou no meu pensamento, então ver acontecer na forma de uma criação coletiva foi muito forte. E também o fato de o lugar ser uma terra originalmente indígena é algo que me toca e que merece nosso olhar.

CAMILA TAUCHEN

GIULIANA HEBERLE

JORGINHO: O que representa para cada uma de vocês poder contar não só para Gravataí, mas para o mundo, essas narrativas que pairam sobre esse lugar que é tão lindo?

CAMILA TAUCHEN: A responsabilidade é grande, mas penso que esse pode ser apenas um começo, um despertar para essas histórias. Nosso curta não tem a pretensão de contar fielmente cada lenda. São muitas histórias incríveis, que nos serviram de inspiração para um filme de certo modo experimental, que também busca trabalhar a capacidade narrativa da performance. Para mim, pessoalmente, já está sendo muito especial ver como essas lendas e o projeto do filme em si têm impactado nossa própria equipe. Não sabemos como vai ser a recepção do público, talvez nosso filme incomode, agrade ou decepcione. Tudo isso faz parte, mas a ideia realmente é tocar de alguma forma e chamar a atenção para a riqueza cultural e ambiental que envolve o Ita.

GIULIANA HEBERLE: É um paradoxo, porque as lendas são tensas, a própria história da humanidade se baseia muito em dinheiro e poder, e ao mesmo tempo um lugar tão bucólico e lindo não parece que vai ser palco daquelas situações. Hoje o lugar está se transformando e as pessoas que são donas daquela área estão trabalhando em projetos de regeneração da natureza a partir da criação de um instituto. Acho uma iniciativa ótima, o Morro Itacolomi precisa ser um lugar educativo e inclusivo também, que divulgue informações sobre cada um recolher seu lixo quando for visitar, e levar essa prática pra vida, e que conscientize os turistas sobre formas de evitar queimadas, como não fazer fogo no local, para que seja realmente um objetivo de todos preservar a Mata Atlântica, a vida, e poder aproveitar a paisagem do Morro.

CAMILA TAUCHEN

GIULIANA HEBERLE

JORGINHO: Como vocês enxergam esse momento de retomada cultural? Como foi estar na pandemia realizando esta obra?

CAMILA TAUCHENFoi uma montanha russa. O início do projeto aconteceu em um momento muito importante, quando estávamos em casa sem perspectiva de vacinas, sem contato social, buscando formas de manter a saúde física e mental. Então, pensar nesse projeto foi um respiro muito importante. Depois, ficamos meses marcando e remarcando as gravações porque, quando pensávamos que a situação estava melhorando, chegava uma nova crise, aumento no número de casos, hospitais lotados, e lá íamos nós adiar novamente. A prorrogação dos prazos da Aldir Blanc foi muito importante para que pudéssemos gravar em segurança, com toda a equipe vacinada e pandemia um pouco mais controlada, embora ainda presente. Depois de mais um ano de reuniões virtuais, foi incrível nos reencontrarmos e compartilharmos tantas trocas e aprendizados. A estreia do filme Pedra Menina ainda vai ser online, mas o desejo, certamente, é que no futuro possamos ver ele em uma tela de cinema de algum festival, com pessoas reunidas e a arte em toda sua força. Sonhar não custa nada, né?

GIULIANA HEBERLE: Foi bem angustiante viver esse tempo de incerteza, e o trabalho foi acumulando porque os hospitais estavam lotados e não tinha como a gente se reunir para gravar. Respeitamos muito o contexto e a cada um de nós, inclusive as famílias envolvidas no processo, até sentirmos a segurança de realizar. Sobre a retomada, o governo precisa apoiar a vacinação, a cultura e o acesso a esse tipo de projeto para que se realize, então percebemos a importância desse reconhecimento, para que tenha um investimento na área e assim seja possível a profissionalização das pessoas de todo o setor, no nosso caso, o audiovisual. É realmente um privilégio poder trabalhar com cultura nesse momento do país.

CAMILA TAUCHEN

GIULIANA HEBERLE

JORGINHO: Quais os projetos para o futuro?

KETELYN SCRITTORI: O setor cultural foi um dos mais afetados pela pandemia e o fomento de leis emergenciais, como foi o caso da Aldir Blanc, é urgente para que o setor respire novamente. Em Gravataí, atualmente, há uma mobilização muito forte, com profissionais muito sérios e comprometidos, para resgatar um setor que ficou tão enfraquecido com a COVID-19. No mês que vem serão realizadas diversas ações em comemoração aos 10 anos do Quiosque da Cultura, financiado por um edital público municipal, e eu vou participar de duas intervenções digitais. Uma com o grupo que faço parte, o Coletivo de Arte Tônus, e outra colaborando com um curta-metragem do diretor Guilherme Pacheco. Todos vão ser lançados no fim do mês de outubro e, acredito eu, irão fomentar e estimular a vida cultural da cidade. É um privilégio poder fazer arte num momento tão sensível como o que vivemos e, diante disso, entendo a cultura como atividade essencial para que enfrentemos tal momento.

KETELYN SCRITTORI

JORGINHO: Deixem uma mensagem para o leitor do Arte e Cultura e para quem vai assistir ao curta Pedra Menina.

KETELYN SCRITTORI: Estamos muito felizes e honradas por podermos contar algumas das histórias que permeiam o Morro Itacolomi. Foi um presente para nós a possibilidade de transformarmos essas histórias em performance artística e, sendo assim, queremos igualmente que o filme seja um presente para o município. Nossa estreia é no fim de outubro e todas as informações serão divulgadas em nossa página do Instagram @filme_pedramenina.

KETELYN SCRITTORI




Fiquem atentos para não perder o filme PEDRA MENINA: @filme_pedramenina



Jorginho









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