A sombra e o bode expiatório
Eu
vou falar de algo que pode ser difícil para as pessoas tanto quanto é difícil
para mim. Mas meu lema é “cutuque a ferida até que não doa mais”!
Estava
lendo novamente um dos meus livros favoritos para falar de um assunto que amo
muito, A sombra e o mal nos contos de fadas, de Marie-Louize Von Franz, quando
me deparei com uma fala sobre a sombra e o bode expiatório.
Segundo
a pesquisadora junguiana, a sombra é tudo aquilo que não reconhecemos, mas está
dentro de nós. Não necessariamente ela é ruim ou boa, pode-se ter uma personalidade criativa, a qual é
reprimida e ignorada desde a infância, e pode-se ter uma raiva do mundo, tudo
bem escondido, fingindo-se calma e equilíbrio. Todos temos sombra pessoal e
sombra coletiva (de uma sociedade inteira). Então ela falou sobre o que seria a
sombra coletiva e como podemos reconhecer nossas sombras vivendo em
coletividade também. Recomendo a leitura deste livro, para maiores
entendimentos.
Marie
dá o exemplo do introvertido, que ao ser inserido num grupo apenas de
extrovertidos, pode também se demonstrar extrovertido em igual, com desejos de
liderança e poder, sem perceber. Ao retornar ao seu cotidiano, volta a ter a
personalidade introvertida de sempre, pois a sua sombra é a extroversão. Já uma
pessoa, inserida num meio o qual não condiz nem com sua luz e nem com sua
sombra, destoa.
Existem
meios, segundo ela, que alguns grupos sociais escolheram para se tornar visível
essas sombras de grupos. Uma delas foi a missa negra, onde se fez uma tentativa
de tornar visível as sombras ao povo. Por fim - e onde eu quero chegar - ela
encerra essa reflexão falando do bode expiatório:
“No
exército suiço fala-se do mascote da companhia, alguém inconscientemente
escolhido para ser o bode expiatório, geralmente um homem com uma estrutura de
ego fraca, compelido a se comportar como sombra do grupo. Tal situação pode
produzir trágicos resultados. Encontramos o mesmo esquema na família, onde a
ovelha negra é forçada a carregar a sombra dos outros.”
Esse trecho me fez refletir profundamente sobre nossas condutas sociais. Temos diversos bodes expiatórios sociais, cuja única funcionalidade é representar o todo, que não é capaz de assumir suas verdades. O próprio termo “ovelha negra” não significa um termo racista, mas sim algo totalmente simbólico. A ovelha faz parte de um grupo, porém ela carrega aquilo que está no escuro, não assumido pelos demais ou totalmente desconhecido, uma novidade a qual todos temem por não saber como funciona e os resultados que causa. Talvez essa simbologia do escuro também explique um pouco do preconceito racial desde os primórdios (palpite pessoal).
Como
curiosidade e observação, já reparei diversas vezes, no meu trabalho, pessoas
que se destacaram negativamente com o grupo inteiro. Normalmente, a equipe é
muito dividida, cheia de “panelinhas” bem definidas. Contudo tivemos momentos
de extrema união para apontar e pontuar condutas de pessoas que eram postas na
berlinda como totalmente inversas, negativas e prejudiciais. Quando essa pessoa
em questão se retirava, a vitória era breve e logo retornávamos à mesma
divisória de sempre. Sempre me questionei por que nos unimos tão facilmente na
guerra, mas dificilmente nos unimos no amor por algo em comum.
Ser
o bode expiatório de um ou mais grupos é doloroso, só quem já viveu ou vive
isso sabe o quão ruim é. Muitas vezes, a ovelha é distorcida e culpada de
coisas às quais nem sempre tem real culpa, para representar o que aqueles
grupos não querem assumir de si. Temos o chefe que distorce e inventa defeitos
para um funcionário, invés de assumir que está equivocado em suas atitudes;
temos as colegas que reconhecem a criatividade em apenas uma e diz que não têm
capacidade para isso; temos a mãe que visualiza tudo que não aceita em si num
dos filhos, o reprimindo de todas as formas possíveis para não ver mais o
espelho; temos o político (na verdade, todos!) que representa tudo de ruim nas
nossas condutas sociais e não importa o que se possa dizer ou fazer, ele é
sempre a prova viva do que ainda somos e não reconhecemos. Conheço pessoas
totalmente aversas ao Bolsonaro, por exemplo, mas que têm condutas idênticas a
ele, condutas que elas mesmas criticam no político em questão. Eu fico chocada
com a falta de auto percepção dessas pessoas. Como alguém pode criticar nos
outros ações que elas mesmas têm e justificam sobre si mesmas? Não faz sentido!
Marie
ainda afirma em seu texto que sempre reconhecemos nos outros aquilo que temos
dentro de nós. Em menor ou maior grau, a outra pessoa é sempre nosso espelho.
Como podemos reconhecer, julgar, maldizer e dar explicações daquilo que nunca
vimos funcionar bem? Não adianta dizer que viu isso na vizinha, no irmão, no
colega. Vem de dentro e faz todo o sentido!
O
Ego, em resumo muito simples, seria a personalidade de um indivíduo, o seu “Eu”
que se comunica com o mundo externo, (recomendo uma pesquisa desse termo pela
psicanálise). Pessoas com o “ego frágil”, como menciona Franz no trecho citado
a cima, seriam aquelas que sucumbem facilmente diante das diversas demandas do
mundo externo, talvez porque não tenham confiança em si, talvez por que não se
conhecem, ou não estejam firmes sobre si mesmas - os motivos são diversos e
muito pessoais. Isso é farejado de longe, ainda mais por predadores sociais, os
quais projetam suas sombras nos outros, invés de voltarem-se para si.
Ter o ego frágil é o mesmo que estar sangrando e entrar num mar cheio de tubarões. Porém como fortalecer o próprio ego numa coletividade tão doente, cega a tudo que não seja concreto, exigente, julgadora e que não dá espaço para respirarmos e nos voltarmos para o próprio interior?
Conclusão,
“em terra de cegos, quem tem um olho é rei”! Quem está disposto a conhecer-se
de verdade - mesmo diante das resistências, repressões, ataques e ilusões rasas
- e a separar o que é seu do que é dos outros, tem mais possibilidades de
sobreviver a esse caos todo, o qual os demais permanecem se debatendo,
projetando ou assumindo. Não é tarefa fácil e não existe receita única. A todos
os bodes expiatórios, eu sugiro que se fortaleçam, convidem suas sombras para
um café e estejam prontos para o que emergir da floresta.
Miriam Coelho é artista das imagens e das palavras
Miriam Coelho |
1 Comentários
Ótimo texto, que faz refletir sobre nós mesmos e buscarmos respostas.
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