ALERTA DE GATILHO!
A obra a seguir contém violência sexual, tortura, descrição gore, citação de drogas e álcool. Siga por sua conta e risco. Caso seja sensível, não continue.
Capítulo 1 ou Prólogo…. Tanto faz
O ano é 2032 e “o Rio de Janeiro continua lindo”, é como diz a música. Na verdade, somos conhecidos como a Metrópole Maldita, desde quando? Sinceramente, não faço ideia. A questão é que agora estou andando pelas ruas do centro em direção a Central do Brasil, grande point de drogas, corrupção, sujeira e tudo que existe de profano. Meu nome, idade, gênero… Nada disso importa. Já estou morta mesmo. A questão é que no meu caminho, na madrugada um fundamentalista está fazendo o que faz de melhor, expurgando uma vida miserável.
Caso estejam desatualizados vale lembrar que o país não é mais o mesmo desde a GRANDE ELEIÇÃO, onde foi estabelecido o protocolo nacionalista que diz: “Todo e qualquer cidadão de bem têm como dever e moral expurgar toda vida suja, pecadora e miserável. Só assim nosso país voltará aos seus tempos de glória”. Me pergunto que tempos foram esses. O problema é que bem na minha frente uma mulher esta apanhando pra cacete e o desgraçado não parece querer apenas “bater”, pra deixar claro que o estupro é crime, mas se for para expurgar é liberado.
Minhas botas do exército estão com propósito incorreto dentro da nova constituição, esses calçados deveriam servir e proteger, mas desde quando morri eles servem apenas para pisar em cabeças e chutar rostos. Foi o que acabei de fazer, mas se pensar com clareza vai entender que acabei de proteger uma vida. Ela está assustada e provavelmente pensa que a farei algum mal. Não tenho tempo pra isso, o bastardo ficou de pé. Admito que odeio e abomino o uso de armas de fogo, mas esse caso é uma exceção. Dois disparos foram o suficiente, bem calculados e bastante eficazes. Uma bala para pélvis e outra para caixa craniana. A garota em meus braços não para de
tremer, escuto sirenes. A cidade do Rio é equipada com sensores de disparos, detectam sons de tiros e localizam, preciso sair desse lugar.
Uma garota bastante magra, consigo erguê-la e me esgueirar por um beco de um antigo casarão. Ali ficamos enquanto ela soluça, preciso acalmá-la ou tudo estará a perder.
- Shuuu… Tudo bem, você não corre perigo. Fique em silêncio ou vão nos encontrar - tento dizer enquanto afago seus cabelos cacheados. As sirenes da PM passam inebriantes na madrugada chuvosa. Com os policiais distantes percebo o corpo desfalecido em meus braços, a garota desmaiou.
Num dia normal seria esquisito ver uma figura de 1,85 de altura, trajado como Batman carregando uma garota desmaiada nos ombros, mas é julho, chove e faz muito frio. Apesar de ser o "Inferno de Janeiro", frio por aqui é raro, mas hoje veio a calhar. Atualmente minha casa é um galpão atrás da rodoviária que fica na Central do Brasil, antes era um depósito de camelôs, mas esse lugar que um dia fora movimentado e cheio de gente mais parece uma cidade fantasma. Decidi deixar a moça no colchão que chamo de cama.
Não queria ter que mexer nela, mas a coitada estava molhada da chuva e uma hipotermia era certa naquelas condições. Seu perfil era claro de uma garota de programa, mas não devemos julgar as aparências. Estranho que na identidade da garota diz que seu nome é Patrick Gonçalves Arruda, mas seu telefone tem um recado na capa dizendo “Devolver para Patrícia Gonçalves Arruda”. Seu nome é Patrícia.
- Bom Patrícia, você não vai morrer hoje - sussurrei enquanto terminava de tirar suas roupas molhadas e as trocava por peças de algodão mais quentes.
Me certifiquei de que a garota não ia morrer de frio e fui verificar meu pequeno e humilde arsenal. Contei as balas restantes, limpei minhas facas, troquei minhas roupas, preparei um miojo de lei e finalmente desmontei minha pistola para limpar. Gastei duas balas, não tenho muitas restando. Preciso mudar de lugar, estou nesse galpão há mais de três meses e já deve ter alguém me rastreando. Antes de mudar preciso me livrar do cabelo grande, pintar e tirar os piercings. Adeus, identidade da qual não me lembro mais o nome.
Enquanto refletia no espelho velho e sujo da parede questionando minha próxima aparência, vi uma figura magra e acuada atrás de mim. Sem nem mesmo me virar tratei de tranquilizar a Patrícia.
- Se tem fome a cozinha fica à esquerda, tem vários miojos lá e ovos também. Não se preocupe, não sou um fundamentalista. E nenhuma das minhas calças servem em você, mas tem algumas roupas do outro lado do galpão, deve ter algo que te sirva. — Tentei ser a mais categórica e objetiva possível. A garota continuava atrás de mim, tentando ver meu rosto que permanecia escondido na sombra. Não sei o que aconteceu, mas ela decidiu falar.
- O… Obrigada, Meu nome é Patrícia, como você viu, não sou bem uma mulh…
- Mulher! Você é uma mulher e nada disso é da minha conta — Me virei em sua direção olhando fundo em seus olhos — Garota, só me certifiquei de que você não morresse na mão daquele cretino, mas a sua vida não é da minha conta. Coma alguma coisa, se aqueça e volte para casa.
- Não tenho casa, vivo nas ruas — A garota envergonhada abaixou a cabeça e fitou tanto o chão que parecia querer pertencer a ele.
- Seu dia de sorte, pode ficar com o galpão. Estou saindo de qualquer maneira.
- Quem é você? — Fazia tempo desde a última vez em que alguém tinha me perguntado isso. Essa garota é muito burra ou desatualizada. — Ninguém vive por aqui, essa região é a zona morta.
- Sei disso. Respondendo a sua pergunta, sou um cadáver — Levantei da cadeira indo até o fogão improvisado pensando em fazer um café. Aquela seria uma longa madrugada. — Primeira regra do galpão: enquanto eu estiver aqui não saímos durante o dia. Segunda coisa: quanto menos souber, melhor. Terceira: não toque em nada até o dia em que eu sair, siga essas regras e o galpão é seu.
- Sim senhor… Senhora? Posso pagar com meu corpo se quiser. — Tentador, mas dispensável. Essa criança está desesperada.
- Qual sua idade? — Decidi ignorar a proposta imposta pela criança.
- Dezenove — Mentira! Patrícia tem vinte e três anos, pelo menos é o que diz sua identidade.
- Sua identidade diz vinte e três. Não quero seu corpo e tenta ficar na sua até eu sair. — Com meu copo de café voltei para a mesa onde estava.
Impressionante como esse lugar se tornou um monopólio do sexo, com a idade da Patrícia estive sendo vítima de porcos abusadores. Aquela foi a pior época da minha vida. Se é que tive algum momento de paz nesse caralho. Lembro de estar sempre fugindo, primeiro foi da minha casa para não ser abusada, depois dos policiais para não ser morta, das pessoas para não ser julgada. Quando foi instaurado o alistamento de emergência estava no auge dos meus vinte e cinco anos, fui aceita por ainda estar na idade. Pensei que teria paz, mas o pesadelo foi pior que imaginei. Alojamento misto, mulheres, homens e no meio deles animais. Pessoas como a Patrícia e eu eram os alvos certos. Precisei esconder quem eu era e me impor. Bati e apanhei, fui humilhada de tantas formas e torturada da mesma maneira, não sei como minha sanidade não se perdeu naqueles 6 anos. Aproveitei cada oportunidade para subir de patente, menti e usei pessoas. No meu ponto de vista era algo justo para compensar as merdas que passei. Consegui alcançar meu objetivo e matar o pior porco que atravessou meu caminho e possuiu meu corpo. Não fui punida, algumas pessoas felizes com o meu feito pensaram que seria uma boa ideia me usar como assassina e assim dei cabo de inúmeros líderes políticos, membros da ONU e até mesmo do presidente da época, meu maior erro. O desgraçado se tornou um mártir e seus herdeiros assumiram o posto presidencial como a Dinastia Romanov. A diferença é que ninguém pôs um fim nisso
Para encurtar, sou procurada por crimes de guerra dos quais fui apenas um peão. Culpada pelo país estar na merda que se encontra. Nos registros de óbito consta que morri há dois anos em um incêndio, mas as sombras da democracia sabem que sua maior ameaça segue livre como um fantasma, pronta para cortar cabeças. Vou expor e matar cada desgraçado que ousou limpar o rabo com a minha cara.
Antes de voltar pras ruas como o Conde de Monte cristo, preciso me livrar da criança dormindo no meu colchão. Sempre que olho para Patrícia lembro que esse lugar é o próprio inferno para nós, os diferentes.
Sempre que pego no sono sou arrastada para o mesmo pesadelo. Não é bem um pesadelo, mas uma lembrança ruim de uma das várias experiências das quais vivenciei.
Luzes fortes de uma sala de cirurgia, sangue jorrando como um açougue de humanos, as dores que me atormentavam a cada sessão de tortura. Minhas cicatrizes latejando, suor escorrendo, mais uma incisão e outra, depois de outra. Generais olhando atrás de um vidro todo aquele show gore e sádico, risadas descontroladas enchendo o centro cirúrgico. Minhas risadas.
Os flashes dos acontecimentos parecem confusos, mas sei exatamente tudo o que aconteceu. Estavam testando novos meios de transformar cobaias em super soldados. Mais resistência física, mais força, menos sensibilidade. Graças a esses experimentos me tornei quase um robô. Tínhamos direito a chip de rastreamento e tudo. Genial e desumano. Muita gente não segurou a onda, quem os culpa? O Brasil tinha seu próprio Josef Mengele, depois da pandemia do famigerado Coronavírus o Doutor Fabrício Moreira, foi praticamente endeusado por conseguir uma vacina em tempo recorde. Esse desgraçado é responsável pela minha mastectomia forçada, poderia pelo menos ter me dado algo em troca.
Ele liderou o grupo de pesquisa e desenvolvimento de soldados modificados e foi meu marido por alguns meses. Belo romance de merda, mas nem tudo foi ruim, graças a essas mudanças no meu corpo que não foram registradas por ele, consigo me esconder e forjar identidades. Resultado das experiências dele envolvem heterocromia, menos duas costelas, uma mastectomia masculinizada e falta extrema de sensibilidade. Posso levar uma facada, um tiro e não sentir nada. Ele tratou de injetar doses cavalares de testosterona em mim, mas o corpo não aceitou muito bem. Sou um andrógeno perfeito.
Acordei no ímpeto ao sentir leves mãozinhas passando pelas minhas coxas. Patrícia estava debaixo da mesa como um gato sorrateiro de olhos grandes, ela sabia que tinha sido pega no pulo.
- Vaza daí — Não segurei meu descontentamento com a situação, mas o fator crucial da minha irritabilidade foi ter meu sono interrompido. — Qual é a porra do seu problema?
Assustada com meus gritos a garota começou a chorar descontroladamente.
- Desculpa, eu só queria… Eu, só estava curiosa. — Estúpida, ela não sabe que a curiosidade matou o gato?
- Pergunte — Minha paciência já se encontra num limite inexplorável.
- Você é como eu?
- Não, você provavelmente nasceu uma mulher no corpo errado. Meu caso é mais complicado — Nunca pensei que voltaria a sentir dores nas têmporas, meu sono interrompido estava mostrando sinais de suas consequências — Não sou um homem e deixei de ser uma mulher faz anos. Não há nada que você queira entre minhas pernas e nunca mais volte a me tocar ou te mato.
- Entendi, desculpa. — A garota seguiu deprimida para o colchão e ficou lá até pegar no sono. Que coisa mais problemática, entendo que ela está no auge de seus hormônios, mas fazer isso com qualquer pessoa é perigoso, além de ter invadido a privacidade de um estranho. A chuva parou, o silêncio se instaurou no galpão até algo lá fora chamar minha atenção. Passos, dois, quatro… Ao todo são cinco pessoas. Pisando em poças, são descuidados ou apenas uma distração? Não tenho tempo, preciso sair daqui.
Imaginei que alguém encontraria esse galpão, mas foi mais cedo que pensei. É dia lá fora, então se esconder será um problema, esse não é o único problema aqui.
- Patrícia, acorde! — Ela parece mesmo um gatinho, mas não é hora de pensar nessas coisas. A garota já desperta me olhava com temor. — Precisamos ir agora! Vista-se.
Os tiros para dispersar estavam acertando as paredes de latão do galpão, aqui dentro somos alvos fáceis. Como pensei, três meses foi mais que o suficiente para ser rastreada. Minha matéria favorita na escola sempre foi história e dentro dos estudos sobre as grandes guerras minha atenção sempre foi direcionada às táticas usadas. Quando estudei as Guerras Napoleônicas a tática russa de terra arrasada foi sem dúvidas a minha queridinha.
Então, coloco explosivos em cada canto de sustentação dos lugares que uso como esconderijo. Saio por uma tubulação _ sempre opte por lugares com dutos de esgoto ou galerias pluviais — sei que eles estarão nas saídas, mas nunca nos dutos. Aguarde eles entrarem e exploda tudo.
- Estamos no esgoto. — Patrícia reclamou logo de cara.
- Esgoto ou tiro, você escolhe — Não tenho tempo para essa garota, continuei andando enquanto ela me seguia desesperada. Não consegui pegar muita coisa, apenas duas mochilas de emergência que estão sempre prontas e um casaco de couro impermeável. Simples e eficaz até conseguir estabelecer uma nova residência em um novo esconderijo.
- Garota, sei que te prometi o galpão, mas as coisas não foram conforme o planejado.
- Tudo bem, vou te seguir. É melhor que ser morta ou levar uma surra pelas ruas.
- Estando comigo nada vai te impedir de apanhar — Sempre clara e objetiva. O mais sincera possível. Ela não pode pensar que isso será a merda de um romance adolescente.
Quando estudei as galerias subterrâneas da cidade do Rio, descobri uma linha que liga a central até a praça Mauá e de lá consigo me esconder até o antigo porto Maravilha. Aquele lugar atualmente é uma grande feira clandestina, antes foi um dos maiores pontos turísticos da cidade e agora vende de órgãos à armas. Tudo quanto tipo de tráfico que você imaginar tem naquele lugar.
- Garota é o seguinte. Vamos para o mercado do porto, você é alvo fácil por lá. Não me responsabilizo se alguma coisa acontecer. Não saia de perto de mim.
Assustada Patrícia concordou com cada coisa que disse. Não sei o passado dessa menina, mas ela não parece ter sido feita para as ruas, na verdade, ninguém é preparado para a vida nas ruas. Olhando para ela me lembro de quando fui acolhida por umas travestis da lapa, único lugar cem por cento seguro para mim naquele momento. Lavava, passava e cozinhava em troca de moradia. Pena que vi cada uma delas serem mortas por policiais em uma batida. Morreram por ser apenas humanas.
O mercado do porto era uma grande confusão de dia. Nada diferente da antiga feira de Acari, a diferença é que ninguém além dos renegados passam por aqui. Meu contato é uma idosa conhecida como Matriarca, ela é responsável pela venda de armas e tudo que preciso. Uma doce senhorinha de setenta e oito anos, ela nada mais que é a dona de três grandes complexos de favelas em todo Rio de Janeiro. Seus impérios estão localizados na Zona Oeste, Norte e Centro. Os policiais a chamam de “Preta Véia” a maior traficante que o estado já ouviu falar. Pra mim ela é uma grande heroína, a história dessa mulher é encantadora. A jovem viúva e mãe de 6 filhos começou no crime como aviãozinho e hoje é quem controla as rotas de importação de tudo o que você quiser traficar. Com sua influência ela protegeu diversas famílias. Covardia não é tolerada em seu território majoritariamente feminino. Uma utopia feminista. Mulheres negras, brancas, asiáticas, nordestinas, europeias. Todas respeitando o espaço uma das outras. Literalmente um crime muito bem organizado. Mas como nada é perfeito, a milícia se instaurou em um pequeno ponto do mercado para observar os passos da Matriarca. Idiotas, nem mesmo uma folha cai no chão sem que ela saiba, se estão aqui é porque ela os quer onde seus olhos possam ver.
Com pouca dificuldade chegamos ao porto, uma segurança bastante rígida toma conta do lugar. Apavorada com o cenário, Patrícia se agarra em meu braço direito. Se ela fosse um pouco mais pesada provavelmente o arrancaria fora. Essa área é totalmente segura para nós, mas ultimamente tem acontecido alguns sequestros. Os traficantes de humanos, pegam criaturas desavisadas, ou como chamamos, desaparecidos. Já são quase duas da tarde, preciso entrar e sair o mais rápido possível, se algum miliciano me descobrir a Matriarca não vai conseguir me proteger.
- Garota, aqui é terra de ninguém. Caso alguém tente me pegar você deve correr o mais rápido que conseguir e desaparecer, se for levada junto comigo, vai morrer. — Os olhos de gato da Patrícia estavam mais assustados que antes, acredito que ela não tenha gostado da hipótese de nos separarmos.
- Eu protejo você. Conta comigo — Se fosse uma situação diferente essas falas teriam me proporcionado uma boa gargalhada, mas agora me preocupo com essa atitude destemida da Patrícia. — Você me salvou, estou em débito contigo.
- Não tenho um nome, mas algumas pessoas costumam me chamar de Uriel.
Mesmo não encarando Patrícia pude ver um semblante de alívio. Saber meu nome era sinal de proximidade com ela.
- Minha mãe costumava dizer que Anjos e Arcanjos não têm gênero. Por que eles podem ser qualquer um e nós não?
Pousei minha mão levemente sobre os cachos de Patrícia seguido de um suspiro longo e cansado.
- Temos todo o direito do mundo, mas alguns querem ser donos das nossas escolhas. Você não está errada em ser quem é. — Quando me dei conta estávamos na entrada do mercado.
Thamires Marciano
Thamires Marciano, conhecida como Zaki. 26 anos de idade, amante de livros e quadrinhos, formada em Jornalismo, Bissexual, contra qualquer tipo de covardia contra as minorias. Acredita fielmente na leitura como meio de ensino e de clareza social.
03 ANOS DE COLETIVEARTS
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Sempre algo interessante para contar! |
2 Comentários
Acabou? Tem mais? Quero conhecer melhor a Uriel e a Pat.
ResponderExcluirMuito bom, Thamires.
OwO !
Que texto incrível, já estou com vontade de ler o livro.
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