TECITURA

 


Affonso Romano de Sant’Anna




Eles achavam que …

Eles achavam que colocando pedra sobre pedra construiriam uma torre
que ao céu os levaria.

Eles achavam que expondo ao povo seu programa de governo
o povo os elegeria.

Eles achavam que cobrindo de jóias e viagens as jovens esposas
elas jamais os deixariam.

Eles achavam que, se um convertesse o outro, se dois convertessem quatro,
quatro convertessem oito, o mundo inteiro se converteria.

Eles achavam que dando carne ao cão e treinando-o a atacar os outros
o cão jamais os morderia.

Eles achavam que, desconstruindo o conceito de homem e desconstruindo o
sentido das coisas, o sentido das coisas e o sentido de homem de novo
construiriam.

Eles achavam que, no meio da batalha e em meio ao tropel de cascos e botas, que
por serem mansos a terra herdariam.

Eles achavam que estava certo cada macaco no seu galho e estavam seguros que
assim o galho nunca quebraria.

Eles achavam que mais vale um pássaro na mão que dois voando e não esperavam
que o único que tinham alguém lhes roubaria.

Eles acharam que, entrando para a Academia e sendo imortais, diferentemente dos
demais, não morreriam.

Eles acharam que, escrevendo um texto sincero, com bons sentimentos e a
indispensável correção, em escritor um dia se converteriam.

Eles achavam que não tinha importância que não percebessem seu talento e
genialidade agora, que a humanidade um dia os reconheceria.

Eles achavam que poupando diariamente seus centavos teriam uma vida tranquila e
em paz envelheceriam.

Eles achavam que, quando se aposentassem, iam enfim se dedicar àquilo que
queriam.

Eles achavam que era uma bênção e um privilégio viver num país que não tinha
vulcões, terremotos e guerras, embora muitos morressem de doença e abandono, e
outros de bala perdida morriam.

Eles achavam que Deus ajuda quem madruga e por isto tomavam trens e ônibus
bem cedinho e de noite voltavam nos ônibus e trens para de novo acordar de
manhã cedinho porque Deus ajuda quem madruga, diziam.

Eles achavam que fundando uma filosofia que mostrasse a falácia de todas as
religiões tal pensamento em religião se converteria.

Eles achavam que, dirigindo a oitenta quilômetros sempre com cinto de segurança
e sempre com precaução, nada lhes aconteceria.

Eles achavam que, fazendo ginástica, não comendo carne e gordura e não
fumando, o infarto não os pegaria.

Eles achavam que, sendo fiéis na relação, a relação dos dois a vida inteira duraria.

Eles achavam que, jogando com fé, mas com fé mesmo, com aquela certeza dita
inabalável, que a roleta, o bicho, o baralho, o cavalo, enfim, que a fortuna lhes
sorriria.

Eles achavam que, destruindo a arte, uma nova arte construiriam.

Eles achavam que, eliminando os conflitos sociais e as diferenças de classe, a
classe operária um dia ao paraíso chegaria.

Eles achavam que sendo virtuosos os maus derrotariam.

Eles achavam que, quando morressem, suas almas passariam por um estágio
probatório, mas que, graças às rezas suas e dos amigos, do inferno se livrariam.

Eles achavam que, mentindo história afora, à própria história enganariam.

Eles achavam que, convertendo os índios e africanos, a alma dos africanos e dos
índios salvariam.

Eles achavam que, com uma fórmula na mão, a estrutura do universo entenderiam.

Eles achavam que se eliminassem as “raças impuras” e as “sub-raças” do mundo a
todos dominariam.

Eles achavam que, se dissessem à sua amada seus lindos sentimentos e lhe
mandassem flores, poemas e presentes, a amada, por ser amada, os amaria.

Eles achavam que, mudando de cidade e de país, trocando até de língua e
profissão, sua vida mudariam.

Eles achavam que, se mandassem um volumoso exército àquele país bárbaro e
longínquo, o subjugariam.

Eles achavam que, se praticassem aquele esporte diariamente e fossem aplicados
com seus corpos, às olimpíadas um dia chegariam.

Eles achavam que, plantando na estação certa as sementes, pondo na terra o
adequado adubo, na hora certa as flores brotariam.

Eles achavam que, se reunissem os mais sábios e colocassem numa enciclopédia
tudo o que sabiam, o conhecimento humano enfim controlariam.

Eles achavam que, quando viesse a democracia e o povo pudesse manifestar seus
desejos e opiniões, todos os insolúveis problemas sociais se solucionariam.



Sant’Anna, Affonso Romano de. Tempo de delicadeza, L&PM Editores, 2007.

Affonso Romano de Sant'Anna (Belo Horizonte, Minas Gerais, 1937). Poeta, crítico e professor de literatura e jornalista. Filho de Jorge Firmino de Sant'Anna, capitão da Polícia Militar, e de Maria Romano de Sant'Anna, ambos de orientação protestante. Ainda pequeno, muda-se com a família para a cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde inicia seus estudos e se aproxima da literatura ao frequentar as bibliotecas públicas. Começa a carreira jornalística em 1953, publicando críticas de cinema e teatro no Diário Comercial e na Gazeta Mercantil. Em 1954, viaja por diversas cidades mineiras pregando o Evangelho em favelas, hospitais e presídios. De volta à capital mineira, conclui em 1962 o bacharelado em letras neolatinas na Universidade Federal de Minas de Minas Gerais (UFMG) e publica seu primeiro livro de ensaios, O Desemprego do Poeta. Organiza, com outros poetas mineiros, a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte, em 1963. No ano seguinte, obtém o grau de doutor pela UFMG, com apresentação de tese sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Casa-se com a escritora Marina Colasanti (1938), em 1970, e vai residir no Rio de Janeiro. Ministra cursos na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, como professor convidado, dá aulas de literatura e cultura brasileiras em universidades da França, Alemanha e Estados Unidos. Assume a presidência da Fundação Biblioteca Nacional em 1990. Um ano depois, cria a revista Poesia Sempre, importante veículo de divulgação da poesia nacional no exterior. É nomeado, em 1995, para o cargo de secretário-geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas. Colaborador assíduo da imprensa em toda sua carreira jornalística, escreve textos para os jornais O GloboFolha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Correio Braziliense e O Estado de Minas. Tem poemas traduzidos para o espanhol, inglês, francês, alemão, polonês, chinês e italiano

AFFONSO Romano de Sant'Anna. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1162/affonso-romano-de-sant-anna.
Acesso em 22/09/2021 às 10:45hs.

Que País é Este?

1

Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.

Uma coisa é um país,

outra um regimento.

Uma coisa é um país,
outra o confinamento.

Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno "Avante"
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso"
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.

Uma coisa é um país,
outra um fingimento.

Uma coisa é um país,
outra um monumento.

Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.

(...)

2

Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos

somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,

sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,

vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,

senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,

bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,

a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,

cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,

pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.

(...)

Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980).
SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1980.



Affonso Romano de Sant'Anna fala sobre sua trajetória (2017):




Sandro Ferreira GomesProfessor de Língua Portuguesa, Conselheiro Municipal de Políticas Culturais em Gravataí/RS, Servidor Público, Porto Alegrense, admirador das belas artes, do texto bem escrito e das variedades de pensamento.







03 ANOS DE COLETIVEARTS
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