METRÓPOLE MALDITA


ALERTA DE GATILHO!

A obra a seguir contém violência sexual, tortura, descrição gore, citação de drogas e álcool. Siga por sua conta e risco. Caso seja sensível, não continue.

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Capítulo 2 - Mercado do Porto


Fomos recepcionados por olhares suspeitos, desconfiados e maldosos. Não é porque a mandachuva do lugar era uma mulher que as coisas seriam mais tranquilas. Recentemente alguns figurões do Oriente Médio têm estabelecido rota por aqui, a fim de conseguir meninas para seu tráfico de mulheres. Simplesmente nojento. Mas, negócios são negócios. Preciso me certificar de que Patrícia não seja levada. A garota estava aterrorizada olhando para o chão. Seus cabelos cobriam quase todo seu rosto, uma camiseta larga com um casaco maior ainda escondiam sua silhueta. A calça que ela pegou estava nitidamente velha e surrada, era tão larga que foram necessários dois cadarços para segurar a roupa em sua cintura. Aquela figura miúda continuava chamando atenção por se parecer com uma criança. Peguei uma touca no meu bolso e coloquei em sua cabeça para disfarçar a presença daquela criança.

Finalmente estávamos próximos da ala administrativa do mercado. A Matriarca já sabia da minha presença. Graças aos olheiros.

- Minha criança! - Disse a velha saindo de sua cadeira em minha direção - Soube que aconteceu no seu galpão. Não vai pedir benção para sua querida avó?

 - A benção Matriarca - Falei em tom seco deixando claro o meu descontentamento. Aquela velha tinha vendido minha posição.

- Que Deus abençoe você - Falou com um sorriso debochado na cara.

- Preciso de um lugar novo. Me pegaram porque fiquei muito tempo lá. - Os olhos da velha fitavam Patrícia. - A garota é uma mercadoria de troca, preciso entregá-la.

- Para quem? - ela se virou para mim com um olhar furioso - sabe que não pode ter negócios no meu território sem que eu saiba - Apesar do tom afetuoso aquela diaba estava furiosa, mas se tem um lugar onde nem mesmo ela se mete é na alta cúpula.

- Vó, ela pertence ao governador, não posso fazer nada. Era pra senhora estar sabendo disso. - João sem braço é o nome dessa tática, também conhecida como “meter o caô”.

- Entendo Uriel. Você não mentiria pra sua vozinha, né? - Sorri para adoçar o veneno da Matriarca. Os ânimos com o atual governador já estavam por um fio depois da caça aos terreiros, ela sabia que ele poderia estar aprontando por baixo dos panos. Não é errado me aproveitar da crise entre eles, assim ninguém mexe com a Patrícia dentro do mercado e tenho uma preocupação a menos. - Sei de um lugar perfeito pra você, sei que teve ótimos momentos em Guaratiba, lá tem praia e é muito bonito. - Se ela pensa que vai me entregar uma segunda vez tá enganada.

- Parece ótimo Vó, mas agora preciso de acessórios e algumas roupas pra garota. Depois desse serviço vou até o inferno se a senhora quiser. - Com uma risada rouca a Matriarca acendeu seu cigarro de palha e ordenou que um de seus meninos me levasse até o arsenal do mercado, mas antes de sair ela me deu um aviso. - Uriel meu anjo, evite negócios com a alta cúpula ou a Vovó vai ficar muito chateada com você. Agora suma da minha frente.

Mercado do porto um verdadeiro paraíso para os degenerados. Crianças aqui não são permitidas, apesar de saberem desde cedo como funcionam as coisas no mercado. A infância nas ruas do Rio nunca fora tranquila. Delito, violência, sujeira… Tudo que há de pior para uma criança crescer alienada e psicótica, mas nem tudo é ruim. Pessoas boas sem chances na sociedade vivem por aqui, cuidam uns dos outros. Um lugar que deixa clara a diferença entre Marginais e Marginalizados aos olhos julgadores daqueles que vivem e matam pela moral, todos são farinha do mesmo saco, mas aqui dentro do vórtice excluso, sabemos exatamente quem é quem. Você não encontra empatia física nos lares elitistas, mas nessa região a regra é clara “Onde come um, comem dois”. Me pergunto pelo que Patrícia já passou nessas ruas, se teve a mesma sorte que eu de encontrar pessoas boas como encontrei. Como ela foi parar nas ruas? Pergunta idiota eu sei, pessoas como nós sempre somos escurraçadas dos lares por serem quem são, mas ainda sim as vivências sempre são diferentes, uma pior que a outra, mas no fim terminam no mesmo lugar.

Meu destino é incerto, posso morrer uma segunda vez a qualquer momento, basta um único vacilo. O foda é que esse “vacilo” pode ser a Patrícia. Não sei o que fazer com essa garota, nem sei onde deixá-la.

O arsenal do mercado é um lugar grande, como uma galeria cheia de “novidades” tecnológicas e biológicas. Bombas com vírus ativos, armas de choque capaz de ferrar com o sistema nervoso de alguém. A galera daqui é chegada numa moda mais oriental, por tanto, Katanas, shurikens… Kunais e todo tipo de arma que pode ser vista em um episódio de Naruto. Como já disse, abomino o uso de armas, mas a ocasião faz a necessidade, não é mesmo?

Quem é responsável por receber e organizar as encomendas do arsenal é a filha mais nova da Matriarca, Gisele. Ela simplesmente negocia preço de compra, revenda e até financiamento da parada. Se arma fosse vinho, essa mulher seria sommelier. Não deixe seu tom doce te enganar, ela é mais sinistra que caninana.

- Vejo que trouxe convidados. - Seu tom receptivo indica que as coisas por aqui estão tranquilas.

- Vejo que sua mãe vendeu minha posição. - Rebati sua simpatia com meu descontentamento. Estou ciente de que Gisele não sabe do que estou falando, mas ela é esperta.

- Minha mãe e sua avó. Vou cuidar disso, não se preocupe. - Ela sempre teve uma péssima mania de me abraçar. Gisele é irmã de Marlene, uma das travestis que me acolheram quando eu era criança. Antes de morrer Marlene pediu a Matriarca para cuidar de mim nas ruas. Gisele foi quem me salvou do incêndio e me escondeu. - Quem é a menina?

-  Encomenda. - Diferente de Marlene, da Matriarca e de qualquer outra pessoa, Gisele tem olhos maternais e não suporta injustiças e protege as crianças como uma leoa. - Ela vai ficar comigo, mas preciso de roupas pra coitada.

- Criança. - disse ela voltando o rumo da conversa para Patrícia. - Qual a sua idade?

- 23, senhora. - Patrícia era um gato assustado e que estava cravando suas unhas em meu braço.

- Certo. Você pode entrar naquele banheiro no corredor e tomar um banho, já te levo algumas roupas. - Assenti com a cabeça para Patrícia, ela não faria qualquer movimento a menos que eu dissesse que era seguro.- E você Uriel, vamos conversar. - quando a porta do banheiro se fechou, senti intensamente o ar de julgamento e reprovação vindo de Gisele. - Uma criança praticamente, e você diz que é uma mercadoria? Que diabos Uriel?!

- Quanto menos você souber, melhor. Pra ela e pra mim. - Peguei algumas pistolas automáticas e coloquei sobre o balcão. - E também preciso me livrar desse cabelo. - Gisele pegou algumas peças de roupas no armário debaixo do balcão onde estava apoiando seus cotovelos e me entregou.

- Você também precisa de um banho e volte aqui pra tratar esse corte na coxa, e dar fim nesse cabelo. - Ela disse segurando uma mecha do meu rabo de cavalo que estava sobre meus ombros.

- Gisele, sinto a falta dela. - Tento não ser muito sentimental, mas é difícil não lembrar da Marlene quando estou com a Gisele. Deve ser pelo fato de serem gêmeas. - Não me tornei o que ela queria, mas tento não ser o que ela temia. Sinto muito por decepcionar vocês duas.

- Você nunca foi uma decepção, meu anjo. Somos uma família, mas não deixe a sua vó saber disso.

Antes de sair invadindo o banheiro, tentei avisar Patrícia que se encontrava presa na roupa que usava. Tentei não olhar pra garota que parecia um meme de gato fofo. Ela precisa de ajuda. Como uma mãe vestindo uma criança puxei o casaco onde Patrícia estava presa, depois de livrar o pobre gato das vestimentas malvadas lhe entreguei novas peças e comecei a me despir. Nessas situações, pouco importa como você é, se tem vergonha, baixa autoestima, ou qualquer outro tipo de complexo. É uma emergência. Entrei de forma automática debaixo do chuveiro que jorrava água fria em minhas cicatrizes. Limpei o ferimento da coxa melhor que pude e avaliei a situação, com a falta de sensibilidade é difícil perceber um corte ou arranhão. O ferimento é imenso, mas por sorte não pegou nenhuma artéria.

Por um breve momento esqueci que tinha um gato assustado no banheiro comigo. Sabe aquele maldito momento em que você se dá conta da situação e que ela vei bem além da realidade na qual está acostumado? Então. Patrícia estava praticamente se escondendo dentro dos azulejos. Vergonha, medo, desconforto? Diferente dela sou o monstro de Frankenstein infestado de cicatrizes e feridas, entendo seu desconforto ao ver meu corpo. Nem eu costumo me olhar no espelho. É pavoroso o que fizeram comigo.

- Não se preocupe, já acabei. - A primeira toalha ao meu alcance foi como um verdadeiro milagre. Me enrolei na toalha para não deixar a garota ainda mais assustada.

- Você tem muitas cicatrizes. - Sua voz trêmula denunciava seus problemas com a água fria.

- Todo mundo tem alguma cicatriz. - Patrícia não percebeu o controle do chuveiro acima de sua cabeça - tem como deixar mais quente.

- Obrigada - Disse a criança envergonhada. Procurei me vestir o mais rápido possível e sair daquele cômodo.

Gisele me esperava na sala de frente para o banheiro com uma tesoura em mãos. Realmente era impossível não me recordar de Marlene, ela foi uma salvadora, minha salvadora. Não me lembro de muitas coisas pelas quais passei, alguns traumas foram apagados pelo meu subconsciente, mas o sentimento ruim permanece, algo inexplicável. Gostaria de voltar no tempo e reviver os poucos momentos felizes que Marlene me proporcionou, único período onde fui uma criança normal vivendo uma vida feliz, difícil admito, mas feliz.

- Vai matar alguém? - Falei em tom de brincadeira enquanto me sentava na cadeira que Gisele preparou.

- Se me perturbar vou enfiar essa tesoura em você! - Rimos juntas por algum tempo, mas Gisele interrompeu o momento - Uriel, quem é a garota? E não me vem com essa de mercadoria que eu te conheço o suficiente para saber que você não trabalha com tráfico.

- Resgatei ela de um fundamentalista, Deus sabe o que poderia acontecer se eu a deixasse por lá - Falei com um tom baixo enquanto observava os tufos de cabelo caírem no chão.

- Entendi, não gostaria de deixá-la comigo? Pode ser perigoso ir com você.

- Já disse pra Matriarca que a menina é mercadoria, ela estranharia caso a deixasse aqui, além do mais, estou sendo observado o tempo todo, sei que é uma questão de tempo até que a saída do mercado esteja infestada de agentes. Com isso, preciso pensar numa rota de fuga e garantir que ninguém saiba onde estou - Pude escutar o longo suspiro que Gisele soltou.

- Minha mãe é foda! Vou tirar vocês daqui sem problemas e tem um lugar onde pode ficar, lembra daquela fazenda lá em Paracambi? Então, mamãe acredita ter vendido para um figurão de Minas, mas quem comprou fui eu, vocês vão ficar por lá. Tá abandonado, por isso ninguém passa perto. Vou garantir de te informar todo e qualquer movimento da mamãe e dos homens que estão atrás de você. Prontinho! Cabelo cortado com sucesso - Disse me entregando um espelho velho - Corte militar sempre ficou bom em você - Concluiu enquanto me abraçava. O momento maternal foi interrompido por uma figura mirrada na entrada da sala que me olhava fixamente.

- Acabei o banho - Disse Patrícia quase murmurando as palavras - Seu cabelo ficou bom, muito bom…. Agora posso ver seu rosto….é muito bonito.

- Meu bebê é mesmo um colírio para os olhos - Gritou Gisele enquanto apertava meu pescoço num abraço sufocante - Certo, tem um carro pra vocês, é melhor saírem agora e as chaves da propriedade - Gisele jogou em minha direção um molho de chaves e um telefone celular antigo e me entregou um mapa - Sei como você é com tecnologia e rastreamento, por tanto, tudo analógico e livre de hackers. Agora vão, mamãe vai mandar alguém aqui para vigiar vocês.

 - Obrigada por tudo. Você é a melhor - falei com um sorriso no rosto.

- Eu sei que sou incrível - Gisele deu um abraço rápido em Patrícia enquanto seguíamos para uma garagem nos fundos do arsenal, lá tinha um Opala preto esperando por nós.

- Um Opala, sério? - Questionei o modelo do veículo que chamaria atenção por onde eu passasse, por se tratar de um clássico. 

-  Blindado, com GPS, motor V8, painel com sistema touch e nitro. Você sempre gostou do Batmóvel e agora tem o seu. Vão logo! - Joguei a bolsa com armas no porta-malas do carro e arranquei com o veículo pelo túnel subterrâneo que parecia abandonado. Gisele provavelmente usava aquela parte como uma saída particular.

Como ela disse, saímos sem problemas do mercado, mas a tranquilidade seria por pouco tempo. A matriarca me entregaria novamente, assim que descobrisse meu paradeiro. Peguei a antiga avenida Brasil em direção a Dutra, caminho antiquado e abandonado. Antigamente a rota era infestada de carros e conduções que levavam e traziam os trabalhadores da baixada para o centro da cidade, caminho diário para muitos e agora mais parece um cenário de filme de terror.

A noite já estava caindo e o caminho não era amistoso a partir da Dutra. Com todo cuidado segui dirigindo em direção a Queimados para seguir pelas ruas internas até chegar na tal fazenda. Esse lugar era um município familiar, mas com o tempo foi abandonado por conta do difícil acesso e por ser muito distante do centro do Rio, antigamente as linhas férreas transportavam milhares de trabalhadores até a metrópole diariamente. Agora tudo é um grande aglomerado de abandono e miséria. Difícil dizer qual lugar desse estado podemos salvar.

A noite começou a cair e o perigo rondava a cada segundo que permanecemos na estrada. Decidi seguir pela rota que seguia a antiga linha férrea e poupar tempo.

Patrícia já estava dormindo do meu lado e antes disso, ela não abriu o bico durante todo o trajeto. Nenhuma pergunta, conversa fiada ou qualquer tipo de aproximação. Me pergunto que tipo de pessoa ela pensa que sou. Patrícia precisa usar uma arma, precisa aprender a se proteger, se cuidar…. Caso eu morra. Essa merda de preocupação fútil não sai da minha cabeça. Afinal, acho que adotei a garota, um erro eu sei. Quem sabe ela seja útil no próximo ato?

 

Thamires Marciano


Thamires Marciano, conhecida como Zaki. 26 anos de idade, amante de livros e quadrinhos, formada em Jornalismo, Bissexual, contra qualquer tipo de covardia contra as minorias. Acredita fielmente na leitura como meio de ensino e de clareza social. 

Thamires Marciano



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