Picard é um lugar de memória
Fazia algum tempo, como trekker e historiador, que eu queria escrever sobre esse episódio de Star Trek: The Next Generation. Vamos lá.
Escrito por Morgan Gendel e dirigido por Peter Lauritson, "The Inner Light" (TNG,5x25) conta uma das mais belas histórias de toda a franquia e propõe uma reflexão muito pertinente acerca das relações entre história, memória e legado. Além disso, é o episódio favorito de Sir Patrick Stewart, que aliás, tem a participação de seu filho
Daniel Stewart.
Um objeto não identificado
Tudo começa quando a Enterprise encontra, em meio ao sistema Parvenium, um objeto
à deriva, contudo, sem poder identificá-lo prontamente. Após algumas análises preliminares, a conclusão mais plausível é de que se trata de uma espécie de sonda, no entanto, de baixa tecnologia.
De repente o objeto passa a emitir um feixe de partículas que provoca um desmaio do Capitão Picard. Este ao recobrar a consciência já não se encontra mais na ponte da Enterprise e nem é mais seu capitão, mas sim um homem chamado Kamin, que desperta após três dias de febre, amparado por sua esposa Eline, em um pequeno vilarejo chamado Ressik, no desconhecido planeta Kataan.
Aturdido, Picard sai em busca de respostas e encontra Batai, um líder local e amigo deste homem - Kamin - que Picard agora aparenta viver a vida. Batai está conduzindo uma cerimônia na praça local, onde planta uma árvore, afirmando que ela será o símbolo da sobrevivência daquele povo.
Picard então retorna para a casa onde acordou nesta nova existência, depois de horas de caminhada pelos arredores de Ressik. Está faminto e exausto, concluindo ser esta uma prova cabal de que não está sonhando.
Eline lhe pergunta: "você acha que isso, a nossa vida, é um sonho?". Picard responde: "Esta não é minha vida!". Porém, os meses e os anos passam em Kataan e Picard, agora Kamin, vive sua nova vida como o serralheiro de Ressik, tocando sua flauta nas horas vagas.
E aí está um dos pontos mais interessantes da história: o sisudo e comprometido capitão Picard, que nunca pôde constituir família devido sua dedicação integral à Federação, agora tem a oportunidade de viver uma vida oposta. É casado, vê os filhos e o neto nascerem e crescerem. Meribor, sua filha, o auxiliará nas pesquisas sobre os problemas climáticos do planeta. Batai, o filho batizado em homenagem ao amigo falecido, seguirá seus passos na música, tocando flauta também.
O colar de Eline é uma réplica da sonda encontrada pela Enterprise, algo que deixa Picard intrigado. Enquanto isto, na ponte, Riker e a Dra. Crusher tentam ajudá-lo e descobrir o que houve.
A sonda alienígena parece ter estabelecido uma conexão com Picard, que permanece desacordado. Em Kataan vários anos já se passaram e Picard, embora com suas vívidas lembranças da Enterprise, agora vive como Kamin e tenta descobrir - integrado à comunidade - o motivo de uma forte estiagem que assola o planeta. A verdade é que o planeta está morrendo. Na Enterprise, Data descobre que o sistema de Kataan deixou de abrigar vida há mil anos, quando a estrela se tornou uma supernova.
A árvore plantada por Batai e a flauta tocada por Kamin ao longo da história se revelam
importantes símbolos da memória daquele povo. São ícones da esperança e da sensibilidade de uma raça que sabe que deixará de existir em breve. E Picard se tornará o terceiro lugar de memória dos kataanianos.
Vivendo uma vida completa em Kataan, durante décadas, conhecendo tudo sobre os costumes, as crenças, as tradições, os medos e os amores deste povo, Picard/Kamin, já na velhice, é chamado por sua filha Meribor a assistir um lançamento espacial. Contrariado, por não ter sido avisado antes, descobre por fim do que se trata. Batai e Eline, mortos há muitos anos, reaparecem diante de si e lhe explicam que o lançamento que ele presencia se trata justamente da sonda, projetada para encontrar alguém no espaço que testemunhasse sobre aquela civilização desaparecida, que fosse um professor. “Alguém que pudesse contar aos outros sobre nós”, lhe diz Batai. Alguém que pudesse se tornar um lugar de memória vivo, que trouxesse à vida novamente aquele povo extinto através da sua lembrança. “Agora nós vivemos em você”, diz Eline.
Picard recobra a consciência a bordo da Enterprise, tendo ficado pouco mais de 20 minutos inconsciente, ao passo em que uma vida inteira se passou em Kataan. A memória deste planeta e de seu povo foram indelevelmente marcadas no capitão.
A memória de Kataan em Picard
Os kataanianos não tiveram a oportunidade de preservar sua história, de contá-la para outras gerações ou civilizações. Mas puderam fazer com que sua memória fosse preservada, ao menos como eles gostariam de ser lembrados: um povo simples e pacífico, extinguido por causas naturais.
Como afirma Paul Ricoeur, a memória nem sempre é apenas a memória de um indivíduo, sendo também a memória de um grupo, que projeta e pensa no que lhe sucederá futuramente.
Na criação de um lugar de memória vivo, como o realizado através da sonda em Picard, o legado de Kataan pode ser levado a toda galáxia. Pierre Nora já afirmava que "há uma distância grande entre memória e história, contudo, há que se notar que é na memória que se efetiva uma reconciliação do instante com a duração, que a memória recria o real e o vivido" (Duran; Bentivoglio, 2013, p. 220).
Acredito que tenha sido isso que os kataanianos conseguiram realizar, ao fazer Picard experimentar sua vida cotidiana, viver como um deles, com seus problemas e paixões, com seus medos e esperanças. Assim, embora extinto há muitos séculos, o planeta Kataan é agora conhecido por Picard e sempre poderá voltar à vida em todos a quem ele compartilhar suas memórias da vida como Kamin.
Eduardo Pacheco Freitas é professor, historiador e autor de dois livros sobre o universo de Jornada nas Estrelas: Star Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien deve sofrer! (2021)
Eduardo Pacheco Freitas |
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EDUARDO PACHECO FREITAS
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