Zefram Cochrane: um mito histórico
"Não tente ser um grande homem, basta ser um homem.
E deixar a história fazer seu próprio julgamento"
-Zefram Cochrane, 2073.
Star Trek: First Contact, considerado o melhor filme da franquia por muitos trekkers, completou 25 anos em 2021. Dentre todas suas qualidades, a obra aborda questões muito importantes, exploradas através do contato da tripulação - no século 21 - com o grande herói histórico do século 24: Zefram Cochrane. Ali descobrimos que um dos grandes vultos históricos no panteão da Federação é um homem de carne e osso. Glorificado, santificado, reverenciado, mas apenas um homem, com seus dilemas e conflitos, apesar de toda a mitificação que a história lhe reservou.
No universo de Jornada nas Estrelas o século 24 - no qual se desenrolam as histórias de Star Trek: The Next Generation - representa uma espécie de apogeu da espécie humana. O capitalismo foi superado, já não existindo mais a exploração do homem pelo homem, tão característica da nossa época. Da mesma forma, o fenômeno do nacionalismo deixou de existir, pois o mundo inteiro está unificado, já não havendo os conflitos intrínsecos aquele status político.
Os seres humanos que vivem em tal século, sabedores do passado violento da humanidade - violência esta que surgia muito em razão das divisões entre as classes e as nações - consideram viver uma espécie de utopia real: um sonho acalentado durante milênios pelos seres humanos que ali, naquele momento histórico, se tornou real.
O ponto de partida para essa nova realidade humana, de acordo com a perspectiva presente em muitas das histórias que vemos em Star Trek, se dá justamente através do trabalho do doutor Zefram Cochrane, que no século 21, em um planeta Terra que ainda se recupera da devastadora 3ª Guerra Mundial, promove o primeiro voo espacial com a tecnologia de dobra. A partir deste voo, detectado por uma nave vulcana que passava por nosso sistema solar, acontece o primeiro contato da humanidade com uma espécie alienígena, fato que irá nos influenciar profundamente, no sentido de atingirmos a paz e uma grande evolução tecnológica - devido em boa parte trabalho conjunto entre as duas espécies - humanos e vulcanos - que se acrescentam mutuamente, e formam a Federação dos Unida dos Planetas.
No entanto, Zefram Cochrane é um homem de carne e osso, beberrão e com um grande e único sonho: ganhar muito dinheiro com sua invenção para que pudesse usufruir de uma ilha repleta de mulheres nuas, como afirma ao comandante William Riker.
Após todos os episódios em que vemos o nome de Cochrane ser glorificado, em Star Trek: First Contact somos apresentados a faceta real de um herói mitificado pela historiografia do século 24.
Lucien Fevbre, famoso historiador francês, bastante conhecido pela renovação da historiografia em seu trabalho na Escola dos Annales, disse certa vez que a a história é filha do seu tempo.
Nada mais certo.
No século 24, século de grandes conquistas, realizações e qualidade de vida, é natural que a história lance seu olhar ao passado em busca das origens da estabilidade e prosperidade. E a resposta que se impõe é: Zefram Cochrane. O homem, o mito, o ser humano que, com sua invenção, iniciou uma era de paz e harmonia na Terra. O historiador questiona o passado sempre com perguntas do presente. A pergunta nos séculos iniciais da Federação é esta: como superamos nosso passado de miséria e violência e atingimos este nível de vida tão avançado? O parágrafo inicial da resposta, para os historiadores do futuro, não pode ignorar o nome de Zefram Cochrane. Daí a origem de sua idealização, em detrimento de seu lado humano e limitado. Não podemos desconsiderar como ingrediente neste processo mitificador o fato de que Cochrane desapareceu, sem seu corpo ser jamais encontrado, à imagem e semelhança dos melhores messias. Contudo, no episódio "Metamorphosis" da segunda temporada da série original ele é localizado, vivo e rejuvenescido, por Kirk, Spock e McCoy. Todavia, o trio acordou não revelar a fantástica descoberta, preservando o exílio voluntário de Cochrane.
O que importa é que este é um caso no qual a construção historiográfica alçou um simples homem - que embora tenha dado uma contribuição valiosa à humanidade - à condição de santo, mesmo sendo ele, como todos os mortais, cheio de defeitos e de idiossincrasias.
Por exemplo, ao conversar com Geordi e descobrir que no futuro ergueriam uma estátua em sua homenagem, Cochrane tenta fugir de sua grande missão na história, não aceitando que ele, homem mundano, se transformasse em uma espécie de messias, objeto de culto no futuro.
Outro momento interessante reside no diálogo com William Riker, quando os dois preparam a nave Phoenix, que fará o primeiro voo em dobra espacial. Zefram está de ressaca, mas pronto para fazer história. Quando os dois enxergam a Lua no céu e Riker passa a relatar sobre os 50 milhões de pessoas que vivem lá no século 24, em cidades maravilhosas, Cochrane desabafa: "Não diga que é graças a mim! Já ouvi demais sobre o grande Zefram. Não sei quem escreve sua história ou onde vocês obtém informações sobre mim. Vocês têm ideias estranhas a meu respeito. Sou visto como um santo ou um visionário. Quer saber qual é a minha visão? Cifrões. Dinheiro. Não construí esta nave para levar a humanidade a uma nova era. Acha que quero ir às estrelas? Nem gosto de voar. Ando de trem! Construí essa nave para ir a uma ilha tropical, cheia de mulheres nuas. Esse é Zefram Cochrane. O outro cara de quem falam, essa figura histórica, nunca o conheci."
Se por um lado, esta é apenas a visão que Zefram tinha de si próprio, sem perceber a magnitude de sua invenção, por outro é um relato revelador, que comprova ser a idolatria dos seres humanos do século 24 em relação ao cientista um pouco distorcida. Sim, seus feitos foram grandiosos; Mas não, Zefram Cochrane não era uma pessoa desprovida de defeitos, ao contrário, os tinha aos montes. Era apenas... humano. A sua representação no imaginário dos homens e mulheres dos séculos 23 e 24 é quase correspondente a de um Jesus Cristo, de um São Francisco de Assis: um homem sem pecados que se sacrificou pela humanidade.
A história não pode ser uma criadora ou narradora de mitos. Ao historiador, cabe o máximo distanciamento crítico possível, em sua busca incessante pela reconstrução do passado. E esta palavra é importante: reconstrução. O Zefram Cochrane conhecido no século 24 não é o mesmo do século 21. Ele foi reconstruído, a partir de opções, de escolhas realizadas pelos historiadores que vivem 300 anos depois, de forma que a sua imagem histórica se afastou do homem original, tornando-se um mito. Portanto, é preciso muito cuidado para não resvalarmos na satanização ou no endeusamento de personagens históricos. Não existem anjos ou diabos absolutos. Existem mulheres e homens que, de formas mais ou menos intensas, protagonizam a história. Está aí o caso de Zefram Cochrane, inteligentemente pensado pelos criadores de Star Trek: First Contact, para ilustrar.
Prezadas leitores a prezados leitores, foi um grande prazer escrever essa coluna nos últimos meses. Agradeço aos que leram, comentaram e, em especial, faço meus agradecimentos ao Jorginho pelo convite para ocupar este espaço. Desejo um Feliz Natal e um próspero Ano Novo para todas e todos. Um grande abraço, nos vemos por aí.
Eduardo Pacheco Freitas é professor, historiador e autor de dois livros sobre o universo de Jornada nas Estrelas: Star Trek: utopia e crítica social (2019) e O'Brien deve sofrer! (2021)
Eduardo Pacheco Freitas |
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EDUARDO PACHECO FREITAS
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