MICROSCOPIA DO OLHAR



A greve do pensamento

Hoje meus neurônios e sinapses parece que fizeram uma reunião da categoria e deliberaram,  por conta própria, uma greve geral. Percebi isso quando liguei o meu laptop, abri um documento em branco e não aconteceu mais nada. Éramos somente eu, em estado de deserto, e a tela com a folha digital, em estado de virgindade.

Meus dedos bailavam pelas teclas, angustiados, olhavam para mim na esperança de que eu os conduzisse pela dança febril e diária da construção de palavras, frases, laudas inteiras de reflexão e devaneio. Mas eu não estava lá. Não estava em mim. A consciência era presente: olhava os dedos, a tela, a folha, mas, malgrado todos os esforços, eu era um corpo inerte, sentado no tempo e balançar da vida.

Fiz um passeio pela mente vazia, na tentativa de entender a solidão que passeava ali, nos ecos deliberados que agora se presentificavam, onde antes era usina incansável. Entre surpresa e incrédula, encontrei os trabalhadores do cérebro fazendo piqueniques, amigo secreto e esportes variados. Um deles até se arriscava em uma apresentação de stand-up, para deleite e risos incontroláveis de uma plateia despreocupada.

Com alta indignação, impus minha voz no ambiente desregrado e exigi explicações, no mínimo convincentes, sobre o que ocorria ali. Um dos neurônios aproximou-se, com ar de liderança, e me sentenciou a uma “parada forçada”. Explicou que alguns companheiros se encontravam em estado de exaustão, pela minha exigência insensível, sem direito a nenhuma pausa para o seu trabalho, mesmo com todos os avisos que haviam sido enviados a mim. Tentei contra argumentar…

(Nove meses se passaram desde as últimas palavras expostas aqui por mim. Na sequência trago o relato integral explicando o desdobramento da minha reivindicação aos neurônios, e o que ocorreu nesse espaço (não) linear de tempo.)

...mas nesse momento fui constrangida por policiais-neurônios e encaminhada até o departamento do SNC (Sistema Nervoso Central). Gritei, implorei, exigi os meus direitos, sem sucesso. Chegando ali, levaram-me até a presença do diretor-geral dos neurônios, que me apresentou um extenso relatório de abusos da minha parte sobre o trabalho exigido dos neurônios, em uma relação quase “desumana” e imoral, o que o levou a uma decisão radical: férias coletivas.

Boquiaberta, eu assistia a explicação muito ponderada e tranquila do diretor-geral e esbravejei ao questioná-lo se ele sabia com quem estava falando e que era eu quem mandava naquilo tudo ali. Ele, irritantemente blasè, tomava um cafezinho sentado à minha frente, mexendo-lhe com a colherinha em sentido anti-horário, de forma reflexiva e silenciosa. Deixou-me claro que para casos extremos eram necessárias medidas extremas, portanto, eu seria levada para um espaço a fim de fazer um exame pessoal sobre o sofrimento imposto aos neurônios que eram meus colaboradores e, portanto, deveriam ser tratados com respeito.

Pensava que aquilo não poderia estar acontecendo, era tudo muito absurdo pra ser verdade. Mas era. Chegando ao meu destino, perguntava-me o que ocorreria dali pra frente. Como ficariam as minhas coisas, os meus escritos, enfim, a minha vida? Provavelmente alguém daria falta da minha presença. Como eu iria explicar isso tudo?

Deixaram-me sozinha em um não-lugar. Só havia a porta de entrada. Não tinha mais nada lá. Era agradável a temperatura, não podia me queixar. Estava tão atordoada e cansada que deitei-me no chão e fechei os olhos. E daí eu escutei o silêncio. Escutei uma imensidão de silêncio tão grande que comecei a chorar, e de tantas águas que fluíam, um pequeno laguinho ia se formando. Queria parar, mas não conseguia, estava com medo de morrer afogada, enquanto a água ia aumentando mais e mais.

Levantei-me e comecei a bater na porta gritando por socorro, não queria morrer ali sozinha. Até que, por puro desespero, busquei a maçaneta e a girei. Para minha surpresa a porta se abriu, e ao abrir-se, toda aquela água escoou. Eu caí no chão, exausta e confusa. Ao levantar os olhos, enxergo o diretor-geral dos neurônios ali parado, sério, porém, suave. Eu lhe disse que ouvi o silêncio. Ele sabia. Era necessário ouvir. Ouvir e desaguar. E foi o que aconteceu.

Ajudou-me a sair dali. Deu-me sua mão e seu ombro. Caminhamos lado a lado sem dizer nada, apenas contemplando e ouvindo o palpitar do coração, em um ritmo sereno e constante...tumtum, tum-tum, tum-tum...binário e natural. Perguntou-me se agora eu era capaz de entender. Acenei com a cabeça afirmando que sim. Os neurônios nos observavam com respeito. Eu ia envergonhada, cabisbaixa, olhando timidamente para eles, e recebendo de volta sinais discretos de apoio e aprovação. Ao despedir-se de mim, o diretor-geral orientou-me com firmeza que não esquecesse dos ritmos naturais, que pausas são importantes e necessárias. Parar, para que não seja parada. Tudo flui, a seu tempo.

Cada vez que lembro-me do ocorrido, trato de dar ouvidos e voz ao coração. Ele tem coordenado os meus tempos de agora. E é com ele que tenho aprendido as suavidades da vida. Meus neurônios, agradecidos (e aliviados) pela consciência dos meus atos, passaram a me tratar com mais afeto. Isso talvez seja influência dos “cardio-emocionais” (fui eu que os batizei com esse nome), com quem passaram a dividir a difícil tarefa de dar fisicalidade organizada e potente às complexas, difusas e por vezes selvagens formas do pensamento multidimensional que me atravessa e me faz existir.

Patrícia Maciel

Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS; Gestão Cultural pelo SENAC-RS; Língua, Literatura e Ensino pela FURG, e Arteterapia pela Famaqui/RS (em andamento); graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em pedagogia da Arte, processos criativos e escrita criativa. Membro fundadora do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.


COLETIVEARTS
Não espalhe fake news,
espalhe cultura!


Postar um comentário

6 Comentários

  1. Muito bom, Patrícia. Adorei a riqueza de metáforas e imagens simbólicas, quase como se fosse o roteiro de um curta da Pixar.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grata pelas palavras, João. Interessante o seu comentário sobre os roteiros da Pixar, pois nas leituras finais de adequação do texto também me remeteu a isso...quem sabe, né? :)

      Excluir
  2. Ótimo texto, tenho passado bastante tempo com crises de que meus neurônios não conseguem criar

    ResponderExcluir
  3. Oi, Lais. Esse vazio criativo é o grande desafio para quem cria e escreve. Mas há algumas ferramentas e técnicas que ajudam muito a desbloquear isso. Abraço

    ResponderExcluir