DEAMBULÂNCIAS


As vozes do caminho

A estrada banhada pela chuva destacava o verde que a circundava, a perder de vista. Das margens vinha uma lembrança forte de mato rescindindo a terra molhada, insinuando-se pelas janelas do automóvel. As cores escondidas na época seca agora explodiam aos olhos: variedades de trepadeiras abraçando os arbustos; carnaúbas com seus escudos de alto relevo e penacho, fazendo-se de sentinelas vegetais; bandos de nervosas borboletas, desorientadas pela ação súbita do vento. De vez em quando pontos saturados de água surgiam, oásis desencontrados.

Estava a caminho da cidade de Pentecoste, nome de boa aventurança, marco da descida do Santo Espírito. Ali participaria de um ato de fé na humanidade: o lançamento de um livro, coletânea de escritoras cearenses, de título ”Quando a maré encher”. Duas das autoras - Yvonne Miller e Marta Viana - seguiam comigo. Zélia Sales, também autora, já estava lá nos esperando, com seu carismático “Barão”. Elas reviveriam a criação de seus textos junto aos jovens leitores da cidade, na “Raiz de Livro”, preciosa livraria abrigada numa antiga garagem. 

A beleza do cenário, velho conhecido, mas que há anos não percorria, se fazia então ainda mais intensa. Voltava à ecologia da minha infância. Este portal de asfalto anunciava a chegada à fazenda Tupã, de primos de meu pai. Ali o menino urbano tornava-se curumim, para testemunhar a força das águas nas corredeiras, admirar as artes do escorregadio mussum escapando entre dedos e a luta dos peixes no sangradouro do açude. Era um mundo em que novas palavras brotavam, para dar nome às criações recém-descobertas.

Recordo o que era despertar no dia seguinte, após a chegada à fazenda, quando a manhã atiçava a ansiedade infantil, confirmando maravilhas lá fora, nos esperando. Começava então o ajuste a outra vida, tão nova quanto a umidade do orvalho no capim, refrescando nossas pernas na ida ao curral. Ali bebíamos o leite subtraído a bezerros atados a suas mães, após brevíssima mamada. Mal tomado o café, começavam as explorações oficiais de territórios, na emoção de adentrar o terreiro, domínio das galinhas poedeiras, prontas a revidar possíveis ameaças. Depois excursões pelo mato, como quem elabora o rol de todas as surpresas lá guardadas. Acredito ainda: contar histórias é mesmo fazer viagens atravessadas no meio das coisas.

Havia soluções inesperadas para todo tipo de problemas, revelando as artes de heróis e de heroínas de uma civilização muito própria: tio Edmilson, que caiu bêbado dentro da cacimba, para lá ficar esbofeteando uma cobra d´água que lhe apareceu; o vaqueiro Nanan ensinando as manhas do cavalo dissimulado, que depois disparou comigo; a guerra de caroços de umbu na hora de dormir, manchando as paredes branquinhas e a pronta ação da justiça caseira - o primo Deím, a distribuir chineladas aos infratores, poupando apenas os convidados, como era o meu feliz caso. São imagens trazidas por uma luz peregrina, despreocupada de seguir o menor trajeto entre dois pontos.

A distância da cidade parecia dilatar-se pelo recuo no tempo. O mistério fazia-se carne: onde estaria a entrada daquele mundo de tantas imagens? Teria sido o acesso à fazenda redesenhado pelas novas idades da terra? O encanto das vivências, esse ainda estava lá, tinha certeza. Confiava assim que uma espécie de instinto pudesse despertá-las, como quem retoma o contato com antepassados, no íntimo saber de terra, plantas e bichos. Estar no mundo como sinônimo de liberdade, governando-se por cores, cheiros, movimentos, cúmplices da naturalidade de tudo.

O carro prosseguia em linha reta naquela estrada pragmática, sem concessões. Tínhamos compromisso e horário. Minha alma viajante, porém, ficou ainda um tempo seguindo rotas de águas invasoras no mato, adentrando poças de areia movediça, barreiros exacerbados pelas cheias. Lembrava pisar desavisadamente em placas de bosta de vaca de misteriosa consistência, a servirem de reticências na leitura dos caminhos. Do mato chegavam notícias de sons multicores; ressoavam vozes de brincadeiras e de alegrias sobrepostas; assombrações dominavam as noites soberanas, sem energia elétrica, morando em nossa imaginação. Abrigado nesses momentos que logo se tornariam novamente passado, eu me deixei ao mesmo tempo ficar e seguir adiante, feliz por viver tantas vidas.


Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.

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2 Comentários

  1. Sou muito fã da escrita de Paulo Malburk. E essa magnifica crônica veio firmar cada vez mais a maestria desse escritor: que fabulosas descrições, que manejo gostoso de narrar. Viajei de novo pelo sertão rumo a Pentecoste, viajei no passado do menino Paulo.

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  2. Nossa! Maestria da descrição! É como se estivesse diante de um quadro! Da pra sentidos aromas!
    Maravilhoso texto!

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