NAVALHAS AO VENTO


QUANDO A BRINCADEIRA
 PASSA A SER BULLING

Tenho visto postagens sobre esta ser uma geração “mimimi” e não concordo. Muito se fala que no passado as pessoas não davam importância a apelidos e que ninguém ficava traumatizado por isso, que todos cresceram felizes e sem traumas. Será?

Completei 4 anos em outubro e em março já estava no pré-primário no Colégio Santa Clara, em Porto Alegre, a urgência era justamente para que eu tivesse contato com outras crianças, esse contato me ajudaria com relação a disfluência, conhecida como gagueira. Eu pouco saia da zona de conforto que era a família e amigos mais próximos e conviver com outras pessoas foi estranho. E mais bizarro foi ouvir uma freira perguntando porque eu falava “assim”, mas eu não sabia o que significava o “assim”. Aos 6, já na segunda série, matriculada na Escola Estadual Daltro Filho, eu finalmente entendi o que o “assim” significava. Os alunos maiores ficavam rindo, apontando para mim como se eu fosse um bicho estranho numa jaula. Eu que era falante e desinibida, me encolhi no silêncio, permanecendo no casulo por muitos anos. Foi aí que aprendi a me defender no soco. Era normal chegar em casa com o uniforme rasgado e chorando de raiva. As aulas de leituras eram meu maior tormento, aquelas crianças todas rindo e debochando era muito dolorido e cada vez mais eu me encolhia. Criança sabe ser cruel. Eu era a “gaguinha”, “o carro enguiçado”, a “guiguigui”, além de ser a”quatro olhos” e “cara de banjo”... Na oitava série, no trabalho final apresentado para os pais eu preferi ficar cuidando do som do que falar ao microfone. No ensino médio não foi diferente, eu era aquela que ninguém convidava para um sorvete porque “era estranha”.

Aquele que era chamado de “gordo, girafa, vesgo, quatro olhos, baleia, palito” ou qualquer outro apelido pejorativo ou debochado pode não demonstrar, mas muitos engoliram seus traumas. E foi por isso que quando meu filho foi chamado de “quatro olhos” eu não aceitei e exigi posicionamento da escola para que isso parasse. Na minha época não tinha nome específico, hoje chamamos de bullying. Antes só nos restava chorar, hoje nossas crianças são poupadas desse trauma. A menina chamada de “bombril” que antes passava a odiar seu cabelão crespo hoje sabe que isso é racismo, assim como o “alemão batata” sabe que é xenofobia , o “perneta” ou a “gaguinha” sabem que isso é discriminação à pessoa com deficiência, o “boca aberta” pode ser uma criança com déficit de atenção...

A geração não está “mimizenta”, apenas os pais lembram do que passaram e não estão permitindo que seus filhos sofram o mesmo. Pode ser até inconsciente, mas a defesa aos filhos se dá pelo que passamos. Para alguns pode parecer bobo, motivo de piada, mas para o alvo das risadas pode ser um trauma irreversível. Ninguém pode minimizar o sentimento do outro, muito menos constranger apontando diferenças. Não somos todos iguais e é essa diversidade que exige respeito.

No momento em que a brincadeira constranger o outro ela deixa de ser brincadeira.

 

Isab-El Cristina Soares

Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras.


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2 Comentários

  1. Perfeito! É isso mesmo! Não suporto ouvir ou ver qq tipo de Bullying, que viro bicho!

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