NAVALHAS AO VENTO

 

NATAL, A DECEPÇÃO E O AMADURECIMENTO 
DE UMA CRIANÇA

Quando criança eu ouvia que no Natal o Papai Noel trazia presentes para as crianças que foram booazinhas durante todo o ano. E isso foi a pior coisa que eu poderia ouvir.

Minha família não era rica, mas morávamos no bairro Floresta onde viviam pessoas com situação financeira muito melhor que a nossa. Meu avô era barbeiro, minha avó servia refeição para a fábrica da Souza Cruz e meu pai era caixeiro viajante. Nossa vida era difícil mas vivíamos bem, tínhamos o suficiente para viver com tranquilidade. Meus vizinhos da Cel. Bordini, Porto Alegre, tinham situação financeira melhor do que a nossa e isso não era problema, até o dia em que eu percebi que o Papai Noel preferia as outras crianças... e isso doeu.

Eu era a bebê da família, tanto meus avós como meus pais faziam o que podiam para me dar de tudo. Minhas tias avós também, principalmente a tia Hélia e a tia Uca. A primeira me dava presentes lindos comprados em grandes lojas e a segunda, ótima costureira, me dava vestidos maravilhosos, feitos por ela, que eu amava. Meu tio, Neri, também não poupava esforços para me deixar feliz e sempre sabia o que eu queria ganhar. Mas antes de saber que a minha família fazia das tripas, coração, para me darem presentes bonitos, os louros iam para um "palhaço vestido de vermelho que nem existe" como passei a denominá-lo depois daquele fatídico Natal.

Não lembro a minha idade, mas lembro de um menino da vizinhança, uma peste, vivia quebrando vidros e batendo nos menores e repetiria de ano mais uma vez. Quando brincávamos no campinho atrás da escola, ele fazia de tudo para atrapalhar. Eu queria muito ganhar uma bicicleta grande, mas era muito caro e ninguém conseguiu comprar. Naquele ano eu ganhei boneca, bola, uma mini poltrona e outros presente muito legais, mas a bicicleta "tinha terminado no estoque do Bom Velhinho, que no próximo ano ele não esqueceria".

Sempre passávamos o Natal na casa da tia Hélia e voltávamos a pé para casa após a ceia. Passava das duas horas da manhã e os vizinhos estavam sentados nos pátios ou na calçada, conversando, enquanto as crianças brincavam em frente da Churrascaria La Cabaña e da Floricultura A Borboleta que eram prédios recuados, formando uma grande calçada que as crianças adoravam. Lá estava o garoto problema, sorrindo e andando na bicicleta que eu merecia. Eu que tentava ser boa menina, que passei de ano, que respeitava minha avó e as outras pessoas mais velhas, não fui merecedora de ganhar uma bicicleta e o menino malvado foi o preferido do Papai Noel. Isso me fez chorar muito, não mais pelo presente, mas por não ver benefícios em ser "boazinha". Na minha cabecinha eu via vantagens em ser malvada. O Neri teve muito trabalho para me fazer entender que o problema não era eu, nem a caduquice do Papai Noel e foi neste momento que, não tendo outra saída, ele me contou que Papai Noel não existe e foi o maior alívio da minha vida. Este foi o primeiro segredo que dividi com meu tio. Não contamos que eu já sabia de onde vinham os presentes e isso fez com que eu me sentisse amadurecida perante meus amigos. Eu, só eu, sabia toda a verdade.

A partir deste Natal comecei a dar mais valor aos presentes porque sabia que os adultos faziam esforços para comprar o que eu queria. Eu podia ser eu mesma, sem precisar agradar um "palhaço vestido de vermelho que nem existe" , mas eu também sabia que era amada pela minha família e que pais, avós, tios, tias-avós, bisa e padrinhos iam nas lojas e compravam presentes do seus suados dinheiros para que eu ficasse feliz e foram os melhores momentos da minha vida. Eu não dava mais valor aos presentes e sim as intenções e aos beijos nas minhas bochechas.

Foi por isso que meus dois filhos nunca acreditaram em papais noeis ou coelhinhos da
páscoa. Muitos dizem que tirei a ilusão deles, eu digo que não menti para meus filhos. Que prefiro a realidade a uma mentira que possa machucá-los.

Hoje eu não curto Natal, acho a data mais cínica possível. Uma data onde um "palhaço" ganha os méritos por dar presentes caros para crianças que não merecem, enquanto pais fazem o que podem para dar presentes para crianças "boazinhas" que mereciam muito mais e ficam decepcionadas porque um ser criado pela Coca-Cola não foi justo. Uma data onde as pessoas que falam de ti, que tentam te derrubar, que te traíram, te abraçam, te beijam e te desejam "tudo de bom" e logo que nasce o dia 26 eles continuam a te odiar, dando mais uma pausa no dia 31 e voltando a puxar teu tapete no próximo dia 2 de janeiro.

Jesus Cristo, o suposto aniversariante, não é citado nem lembrado. Apenas os enfeites, a árvore mais bonita e o Papai Noel são os protagonistas de mais uma data comercial.


Isab-El Cristina Soares
Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.


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