PORQUE EU COMO CARNE
NA SEXTA-FEIRA SANTA
Desde que me conheço por gente que sou polêmica, questionadora e não aceito ordens ditadas sem o mínimo de coerência.
Ainda muito pequena eu já questionava com a minha avó porque não podíamos comer carne na sexta-feira santa. Aliás, lá em casa não era apenas não comer carne: minha avó nos ensinou a não varrer a casa, não usar nada pontiagudo como tesouras, agulhas ou facas, não comer ovos, não tomar leite, não pentear o cabelo, não usar maquiagem, não jogar qualquer tipo de jogo... tínhamos que passar o dia a base de pão, peixe e vinho. Infringir qualquer um dos itens acima era considerado pecado e Jesus iria punir o pecador, mesmo que o pecador fosse uma criança. No sábado, invariavelmente, minha mãe “tirava a minha aleluia”, como ela dizia, com uma surra logo pela manhã, mas isso não era pecado porque na sexta-feira santa ela não havia comido carne. Fui criada neste ambiente de medo de um Jesus que puniria qualquer pessoa que ousasse “viver” na sexta-feira santa.
Quando eu tinha 13 anos meu pai me levou para visitar o Tio Jesus em Camaquã. Logo que chegamos foi aquela festa. Meu tio, sempre querido e gentil, correu ao açougue e escolheu as mais belas carnes e boa cerveja, minhas primas e primos na maior alegria. Tinha um rapaz tocando violão, lembro que tocou a música “Cerejeira rosa” e eu gostei muito da música, aliás gostei também do rapaz que estava tocando violão, mas isso é outra história.
Ninguém lembrou que dia era. Ninguém se preocupou em não falar alto, não ouvir música, dar risada ou não comer carne. Estávamos muito felizes reencontrando a família que eu tanto amo. Nara e Naimar, as gêmeas, José Rafael e Jones Glen, meus primos queridos muito atenciosos comigo, fizeram meu dia ser muito especial.
Já batia 19h quando meu pai disse: - Vamos embora, temos uma longa estrada pela frente e amanhã é sábado de aleluia. Eu comecei a rir. Durante todo o dia eu tinha consciência que estávamos infringindo todas as leis que eu conhecia e eu estava adorando a experiência. O pai tinha lembrado só naquele momento e todos ficaram em silêncio, analisando o “crime” que havíamos cometido. Foi quando meu tio, com sua voz suave e segura, decretou:
- Eu não acredito que Jesus considere um crime uma festa em família. Tem muita coisa errada para Ele se preocupar com quem come carne.
E é com esse sentimento que eu pontuo a minha vida. Não adianta passar o ano todo fazendo maldades e na sexta-feira santa não comer carne. Tem gente dissimulada, que mente, engana, rouba, mata, prejudica o irmão, faz fofoca, ludibria, vocifera, roga praga e na sexta- feira santa não come carne, como se isso fosse o maior crime que existe.
Pecado é a fome. Pecado é não ter um bife para oferecer ao filho, pecado é espancar o filho, espancar a esposa, passar fome, passar frio. Pecado é usar a língua para falar do outro. Pecado é a soberba. Pecado é o orgulho. Pecado é não amar o próximo. Pecado é se colocar como superior ao outro.
Hoje é sexta-feira santa. Eu já comprei um belo bife para o meu almoço. Tenho certeza de que Jesus Cristo não vai se importar, afinal os outros pecados eu não tenho. Sigo os ensinamentos que o meu Tio Jesus me transmitiu num dia de festa, num dia de alegria, num dia cheio de amor ao lado dos meus primos queridos.
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| Isab-El Cristina Soares |
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| Sempre algo interessante para contar! |
1 Comentários
Muito bom, Isab-El! Eu fui criado como um católico nos mesmos moldes. Deixei de seguir qualquer religião na adolescência, para burilar ao longo da vida um senso de espiritualidade ecumênico. Faríamos bem melhor ao refletir sobre e praticar as lições que o mestre Jesus nos deixou, do que seguir regras e condicionamentos retrógrados, que contrariam a alegria de viver.
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