NAVALHAS AO VENTO

 DESABAFO DE UM ADULTO AUTISTA

Dia 18 de junho celebramos o Dia do Orgulho Autista. Esta data marca a importância de respeitar a neurodivesidade e os espaços de acolhimento do autista na sociedade.

Mas o que significa o Transtorno do Espectro Autista (TEA)? Para muitos ainda é um mito e confesso que até setembro eu também pensava assim. Sempre achei que autista era aquela criança que fica se balançando para frente e para trás, que não se comunica e dependerá para sempre dos pais. Eu era preconceituosa e a vida me esfregou isso na cara.

Graças a uma colega de trabalho eu resolvi investigar porque eu agia de determinado modo para algumas situações, em especial ao que ela chamou de “sincericídio”, mas muitas outras coisas chamou sua atenção, então fui para a investigação de peito aberto e muita curiosidade. Depois de um acompanhamento na minha rotina e muitos exames veio o tão temido diagnóstico: eu era do espectro autista nível 1 de suporte e o chão se abriu.

Confesso que foi o pior momento da minha vida, justo eu que tinha a mente fechada e era preconceituosa achando que todo autista era criança não oralizada. Eu estava entre vários profissionais de saúde e mesmo assim eu desatei a chorar, desesperada. Entre lágrimas eu dizia que me considerava inteligente, que eu era oralizada, que minha gagueira tinha outro motivo, que eu não era doente... Eles esperaram eu me acalmar e só então veio a explicação que mudou a minha vida.

Quem está no espectro autista não é doente. O TEA é um problema no desenvolvimento neurológico que prejudica a organização de pensamentos, sentimentos e emoções e tem vários níveis:

- Nível 1: popularmente conhecido como “leve”, quando o indivíduo precisa de pouco suporte, também conhecido como Síndrome de Asperger,

- Nível 2: o nível “moderado”, cujo grau de suporte necessário é razoável, - Nível 3: conhecido como autismo severo, quando o indivíduo necessita de muito suporte.

Falarei do nível 1, pois é o que eu pesquisei com maior interesse. De acordo com o site  www.bvsms.saude.gov.br , as pessoas do Espectro Autista nível 1 de suporte “costumam imitar comportamentos de pessoas neurotípicas. Em geral, são pessoas que lidam com dificuldades para manter e seguir normas sociais, apresentam comportamentos inflexíveis e dificuldade de interação social desde a infância.” E estas pessoas sofrem por um tipo muito peculiar de preconceito, porque como podem disfarçar o TEA, podem ser confundidas com pessoas difíceis, mau educadas, estúpidas, entre outros adjetivos., muitas nem sabem que estão no espectro. Eu sou chamada de grossa desde sempre. Mas a verdade é que o TEA nível 1 de suporte não tolera muita coisa por não saber lidar.

Autista nível 1 de suporte com altas habilidades geralmente são muito inteligentes e facilmente desenvolvem alexitimia e depressão. De acordo com o Google, alexitimia é “uma condição mental onde há uma dificuldade de reconhecer e expressar emoções, estando associada a um estilo de pensamento baseado no concreto. Ela pode levar a relações utilitárias, sem afeto, tendendo à dependência ou à solidão.” Isso porque a falta de contato com os sentimentos é uma fuga necessária para conseguir viver num mundo de neurotípicos.

O nível 1 de suporte tem por hábito disfarçar as diferenças sensoriais, costuma se violentar pensando que “se todos conseguem eu também tenho que conseguir”. Muitas vezes eu senti dor física porque o barulho era muito alto e as pessoas a minha volta pareciam nem notar. Em um show, por exemplo, as luzes e o barulho chegam a doer nos meus olhos e ouvidos, mas se todas as minhas amigas gostavam eu me sentia muito mal em dizer que não  gostava, e me exigia, fingindo gostar. As pessoas conseguem ouvir normalmente mesmo tendo ruídos muito altos, por isso gravam vídeos na rua, em shows ou outros lugares. Eu não consigo. Todo o som se mistura e fica algo perturbador. Muitas vezes isso terminava em crises, tipo um desmaio, porque era fisicamente insuportável aturar gente que eu não conheço encostando o braço no meu braço, o simples toque pode me causar dor. Hoje não ando mais num ônibus lotado porque sei o que isso pode me causar, antes eu exigia de mim porque todos pareciam vencer a dificuldade melhor que eu. Pessoas que gostam de conversar tocando em mim é uma tortura, uma invasão no meu espaço que muito me incomoda, pessoas que ocupam mais da metade do banco do ônibus, pessoas que tocam em mim para passar... isso é invasão ao meu espaço e isso dói. Só abraço quem eu conheço e confio.

Era preciso lutar a todo momento para me comportar como uma pessoa típica e isso é uma missão impossível, ninguém sabe o que eu estou sentindo e as crises sensoriais aconteciam muito facilmente. Eu via todos se comportando normalmente e acabava pensando: “se eles conseguem, eu também consigo” - sem saber que as sensações são completamente diferentes. E essa estratégia é a sementinha para desenvolver a falta de contato com os próprios sentimentos (alexitimia), que é quando a pessoa decide ignorar todos os sinais do próprio corpo, tipo: “Tá doendo mas não vou pensar nisso.” – até o momento em que deixa de se importar... mas não deixa de sentir... mas de alguma forma desliga a conexão do corpo com a mente e vai ficando cada vez mais adaptável, cada vez mais flexível, passa na faculdade, arruma trabalho, mas se torna um adulto frio, porque não dá para desligar só a parte sensorial ruim, os sentimentos ruins, todos os sentimentos vão embora. E foi assim que ganhei o título de “ácida e corrosiva”, de estúpida, de sem noção... Mas a principal característica do autista nível 1 de suporte é a sinceridade, a ausência de filtro.

Se eu não consigo me conectar com minhas próprias emoções, imagina me conectar com as outras pessoas? Ou tu fala claramente ou não entenderei. Não entendo meias palavras e por isso não sei “enfeitar” a realidade, falo o que vejo, o que penso. Vivemos uma vida solitária, porque são raras as pessoas que conseguem nos entender, eu mesma não me entendia. Mas quando alguém cativa nossa confiança, conquista um amigo fiel, até que faça algo que nos magoe. Isso tudo nos desmotiva muito facilmente.

Existem coisas que eu ainda não entendo. Porque as pessoas tratam as outras pessoas de formas diferentes uma das outras? Tratam o patrão de um jeito e a moça da limpeza de outro. Tratam o engravatado de uma maneira e o mendigo de outra? Eu sempre tratei todos da mesma forma e isso já me causou muita crítica a ponto de eu acreditar estar errada e tentar mudar meu modo de ser. Mas isso doía. Hoje entendo que as pessoas fazem gestos e caretas espontaneamente e isso passou a ser engraçado, porque eu percebi que tenho que entrar no modo feliz, no modo triste, no modo sociável...

Quando digo que estou cansada de ficar sentada conversando, parece idiota para quem ouve. As pessoas não ficam cansadas quando ficam sentadas muito tempo em algum evento social, eu tenho que fingir que não estou me sentindo exausta, porque ficar parada é cansativo. Parece que eu não tenho problemas de comunicação, mas eu tenho que ensaiar diálogos. Ensaio tanto os mais previsíveis como alguns impensáveis porque tenho que me preparar para qualquer assunto, senão não consigo conectar de forma clara o meu cérebro. Então até conversar é cansativo. Quando eu estou no meio de uma linha de raciocínio e alguém troca a direção da conversa ou me interrompe, tenho que fazer um esforço muito grande para voltar ao pensamento inicial. Antes eu ficava triste ao perceber que as outras pessoas iam e voltavam, trocavam de assunto sem problemas e isso era frustrante para mim, me sentia diminuída. Agora entendo porque. O neurotípico tem uma abordagem diferente da nossa. Quando me magoo, fico chateada, emocionalmente desregulada eu simplesmente desengajo da conversa, paro de falar, mudo de assunto, levanto e vou embora ou digo  claramente o que penso. Daí sou chamada de estúpida. Não sou capaz de entender ironia. Tornei-me uma pessoa irônica como forma de defesa, mas não reconheço uma ironia. Não percebo meias palavras nem sei ler nas entrelinhas. Sou objetiva, direta e busco a resolução dos problemas de forma racional. O emocional ficou em algum lugar que desconheço. Abomino veementemente qualquer injustiça. Absorvo qualquer mau dirigido a alguém que eu gosto. Sou amiga e sou inimiga com a mesma intensidade. Grosseira e sem noção com muito orgulho. Ninguém conhece minhas dores.

Ainda doi ao lembrar o dia em que fui contar sobre o diagnóstico a uma amiga e ela disse que agora virou moda ser autista, que todos querem chamar a atenção. Fui procurar alento num ombro que eu confiava, ainda estava abalada com o diagnóstico e chorei muito. Ainda lembro da sua risada debochando... E minhas mágoas duram eternamente...

Hoje me respeito porque me conheço. E, depois de muitas lágrimas, posso dizer sem medo de ser feliz que sou do Espectro Autista nível 1 de suporte e quem achar bobagem este desabafo que vá para onde quiser. Cansei de gente tosca.




Isab-El Cristina Soares


Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras, é Diretora Cultural do ColetiveArts.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.

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"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
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2 Comentários

  1. Poxa vida, 😢 interessante demais tua revelação... Isab és uma rocha...

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    1. Oi, Tânia, sou a Isab-El. Não consigo te responder por falha no meu acesso, por isso pedi ao Jorge.
      Quero agradecer pelos teus comentários, sempre muito queridos. Tânia, eu não sou forte, só não tive chance de ser fraca. A vida nunca me deu essa chance kkkk.
      Bju, querida. Sempre leio teus comentários com muita atenção, confesso q sempre aguardo por eles.

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