ISSO DA UMA CRÔNICA

 Ética fétida 

Da janela da cozinha, os olhos voam por cima da academia de tênis, por cima também de um labirinto de casinhas de tijolo aparente, de pátios e becos até esbarrar na fachada branca de um prédio. Lá no alto, acima ainda do último andar, algum artista urbano provavelmente arriscou sua vida para fazer uma pixação. Demorei para perceber que aquilo eram letras. Depois demorei para decifrar as palavras que elas formavam. Depois demorei para entender significado e sentido. Ética fétida. 

*** 

Duas coisas não deixam de me surpreender desde que vim morar no Papicu: a grande quantidade de sujeira e a pouca quantidade de acidentes de pedestres envolvendo buracos nas calçadas. Alguns desses são capazes de engolir a perna inteira de uma pessoa que passa desprevenida por ali. Quem sabe olhando pro celular ou simplesmente andando no escuro. Deu um passo e zás! – com sorte tem algum lixo acumulado no fundo para amortecer a queda.  

Outro dia estava voltando do passeio com Chico. Ia eu levando a coleira na mão esquerda e o saquinho com o cocô dele na direita, varrendo a rua com o olhar em busca de uma lixeira quando passei ao lado de um estacionamento 

— Tem um buraco bem ali — o vigia apontou uns metros mais à frente. 

Achei fofo ele me prevenir. Focada como estava na minha busca, poderia facilmente ter pisado no vazio e zás! – lá se vai um pé ou um fêmur quebrado. O moço poderia muito bem não ter me avisado; no fim das contas não me conhece nem nada. Mas ainda pessoas no bairro que se preocupam e zelam umas pelas outras, uma ética comunitária pairando pelos ares malcheirosos, porém afetuosos, do Papicu. De repente me senti imensamente feliz e privilegiada em morar aqui e poder fazer parte dessa grande rede de apoio vizinhal. Melhor bairro da cidade em toda Fortaleza não há cidadão melhor do que o papicuense! Agradeci ao jovem com meu melhor sorriso. 

Pra senhora jogar o saco. 

Demorei, mas finalmente entendi. Era isso. Ética fétida. 

Yvonne Miller
Foto: 
Thaís Vieira


Yvonne Miller é natural de Berlim, mas prefere o calor do Norte e Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Tem crônicas e contos publicados em várias antologias e escreve quinzenalmente para a “Rubem – Revista da Crônica”. É uma das organizadoras da coletânea “Quando a Maré Encher” (Mirada, 2021) e autora de “Deus Criou Primeiro um Tatu: Crônicas da Mata” (Aboio, 2022), que reúne 50 crônicas – ora humorísticas, ora reflexivas, poéticas ou políticas – sobre sua convivência com a flora e fauna na Mata Atlântica pernambucana. Atualmente mora na ilha de Algodoal, no Pará, junto com sua esposa, gato e cachorro. Contato: @yvonnemiller_escritora

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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