ARTE E CULTURA

UM GÊNIO CHAMADO MAURO BOSELLI

Durante esses quatro anos que o ColetiveArts está organizando o evento online Cavalgando com Tex, eu sempre trouxe com muito orgulho entrevistas com roteiristas e desenhistas de Tex, porém me faltava aquele que para mim é um dos maiores gênios do quadrinho mundial, Mauro Boselli. Por dois anos tentei realizar uma entrevista com ele, mas por ele estar muito ocupado, acabava sendo adiada. Porém este ano, mesmo com suas tarefas (e ele está sempre cheio delas, o homem é uma máquina) ele conseguiu um espaço para me atender, e valeu muito a pena. Mauro além de ser um grande escritor é uma grande pessoa e espero caro leitor, que você curta cada momento desta entrevista, assim como eu. Com vocês THE BOS:

MAURO BOSELLI

JORGINHO: Como Mauro Boselli se define? 

MAURO BOSELLI: Como a entrevista é sobre minha carreira nos quadrinhos, eu diria que me defino como um contador de histórias. Eu, quando era criança, já contava sagas muito longas e intermináveis ​​para meus amigos da infância nos dias de férias que eram chatos. Eu tinha listas prontas dos meus personagens, de gênero western, espionagem, ficção científica, com várias aventuras e seus títulos já preparados, e dava aos ouvintes a escolha da história, e então improvisava livremente sobre o tema escolhido. O difícil foi não perder o fio da história quando eles me pediam para continuar no dia seguinte! Anos depois, quando levei minha filha pequena para a escola, também criei para ela longas narrativas das quais ela foi, acima de tudo, protagonista do gênero fantasia, que ainda é lembrado!

Em suma, eu teria contado histórias mesmo que, por sorte, nunca tivesse tido a oportunidade de escrevê-las... Quanto à minha atitude perante a vida e a profissão, eu faço do meu lema o que vi escrito na parede de uma escola primária perto da minha casa, e é dedicado para Martin Luther King: “O que quer que você se torne, seja ao máximo!”

O que é claro, não significa tornar-se o melhor sempre, isso seria um absurdo, mas sempre se esforce para fazer as coisas da melhor maneira possível, seja o que for que você escolha fazer, conforme ensinado no recente filme de Wim Wenders, “Perfect Days”. Com comprometimento diário, mesmo que no começo pareça difícil, depois fica fácil. Isso se aplica não apenas ao trabalho, mas também ao estudo e também às suas paixões pessoais. Não me tornei o melhor esquiador, escalador ou baterista de rock (eu diria que não), mas sempre tentei fazer o melhor que pude em cada um desses campos.

JORGINHO: Como a leitura e os quadrinhos entraram em sua vida? O que você costumava ler quando era criança?

MAURO BOSELLI: Aprendi a ler com os quadrinhos do Mickey Mouse. Meu primo costumava lê-los para mim em voz alta, enquanto eu acompanhava não só os desenhos, mas também os balões com palavras. Ele fez isso três ou quatro vezes. No verão eu fiz cinco anos e continuei lendo sozinho. Depois do Mickey Mouse, chegou Tex, cujas "stricias" dos anos cinquenta meu pai comprou, e depois outros quadrinhos e outros livros, especialmente livros de aventura, como os de Emilio Salgari e Júlio Verne.

JORGINHO: Quais são suas maiores influências como escritor?

MAURO BOSELLI: Eu te contei sobre os quadrinhos que li quando era pequeno. Tex de Bonelli e o Mickey Mouse dos mestres italianos da Disney, como Romano Scarpa, cujas histórias eram complexas e muito elaboradas, utilizável em muitos níveis narrativos, como os de Carl Barks. Eu não sabia o seus nomes na época, na verdade ninguém os conhecia, mas eu já conseguia distinguir seus diferentes estilos de narrativa e de desenho. Outros quadrinhos da minha infância foram Fantasma, Mandrake, Flash Gordon, Tarzan de Russ Manning, Michel Vaillant, Asterix, Tintin, Blueberry's Charlier e especialmente Blake e Mortimer por Jacobs. Então, quando adolescente, eu apreciei História do Oeste de Gino D'Antonio e mais tarde fiquei impressionado com Ken Parker, de Berardie e com Terry e os Piratas de Caniff. Essas são minhas influências nos quadrinhos. Mas então havia os livros. Como leitor voraz, aos treze anos já havia lido Emilio Salgari inteiro, em massa, Charles Dickens, Dostoiévski, Poe, Wodehouse, Raymond Chandler, Sherlock  Holmes, Orlando Furioso, de Ariosto, que continua sendo meu livro favorito absoluto (tenho uma paixão por poemas épicos e literatura de cavalaria), etc... bem como toneladas de ficção científica, de Wells, Wyndham, Asimov, Leinster, Heinlein, Sheckley, entre outros.

JORGINHO: Como funciona o teu processo criativo?

MAURO BOSELLI: Ter lido muito (não só ficção) ajudou e ainda ajuda a encontrar ideias. Certamente não estou falando de copiar, mas de encontrar a inspiração certa em um episódio histórico, em um livro de viagens ou em uma viagem pessoal, como a jornada no Alasca que fiz forneceu a inspiração para “In the Northwest Territories”, escrito com a arte de Alfonso Font. Mas quase nunca  tenho que parar para pensar muito, eu tenho muitas ideias para histórias dentro da minha cabeça, e nem sempre consigo escrever sobre tudo isso. Se no início demoro muito para refletir sobre o caminho a seguir em cada centro narrativo (minhas histórias são complexas e entrelaçadas), logo sai, deixo que a imaginação flua e que os personagens decidam por si mesmos em que direção ir. Talvez as histórias venham do "Oceano de Histórias"sobre o qual Salman Rushdie escreve, ou dos sonhos e do inconsciente coletivo, como é para Borges, ou dos mundos paralelos onde nossos personagens vivem (truque, é isso que eu literalmente uso para criar eventos incríveis para o meu personagem Dampyr).

JORGINHO: Fale um pouco mais sobre a entrada de Tex em sua vida.

MAURO BOSELLI:  Contei sobre as edições que meu pai comprou e nos quais estava escrito em inglês: TEXT BY  G.L.BONELLI. No ensino fundamental, na turma ao lado da minha, tinha uma criança que se chamava Giorgio Bonelli e que à tarde estudava comigo em um curso de francês. "Que combinação", pensei.  Aí, quando vi o pai dele chegar para buscá-lo, usando um chapéu grande de cowboy na cabeça, percebi que estava olhando para o próprio G. L. Bonelli! No ensino médio e depois no ensino médio clássico, Giorgio e eu nos tornamos amigos e ainda somos. A ligação com G. L.Bonelli tornou-se quase diária a partir dos treze anos. Entrei na barca dele, o “Tex Willer”,  e à certa altura ele até me fez atirar com seu Colt, embora nesse caso eu provei não ser um bom aluno. Quando perdi meu pai aos 24 anos, ele era muito próximo de mim e, por algum tempo, me levou consigo como assistente e secretário em seu estúdio, para manter em ordem seu arquivo western e talvez propor alguns assuntos para ele. Ele realmente não tinha nenhuma necessidade, mas eu, observando-o trabalhar, aprendi, como por "osmose", as técnicas de roteiro.

JORGINHO: Na sua opinião, o que Tex, Gian Luigi Bonelli e Aurelio Galeppini representam para Itália e para os quadrinhos do mundo?

MAURO BOSELLI: Um fenômeno irrepetível. É sempre um caso excepcional quando dois mestres como eles se encontram artisticamente, e o fermento pós guerra favoreceu a criatividade dos dois, ainda que o grande sucesso comercial de Tex tenha vindo mais tarde, no início dos anos sessenta, graças também à política editorial de Sergio Bonelli, que criou o formato certo, hoje chamado de "Bonellian", que deu vida às grande histórias de sua maturidade.

JORGINHO: Que histórias você escreveu sobre Tex, das quais você olha, se orgulha e pensa:"eu fiz um bom trabalho?"

MAURO BOSELLI: Eu sempre tento dar o meu melhor, como disse, procurando escrever o que você gostaria ler de mim. Eu nunca me repito, o que não é fácil, considerando que sou  um escritor do Tex e mais de 110 mil páginas já foram produzidas, sendo pelo menos um quarto delas escritas por mim. Então, mesmo que em algumas ocasiões a história não tenha saído como eu queria, sei que estou comprometido sempre cem por cento, e em noventa por cento dos casos me sinto satisfeito. Escolher entre minhas histórias não é uma coisa fácil. Claramente estou ligado ao “Passado de Carson”, o episódio que me lançou, e aos demais de alcance épico criados para o inesquecível Marcello, como “Os Invencíveis” e “A Grande Invasão”. Depois, para o meu primeiro Texone “Os Assassinos”, lindamente desenhado por Alfonso Font, o artista catalão para quem escrevi o roteiro e outras histórias que considero de sucesso, incluindo a romântica história de fantasmas “Colorado Belle", "Em Território Selvagem” sobre o passado de Jim Brandon e o intrincado mistério sobre a morte de Wild Bill Hickock, “A mão do homem morto”. Minha homenagem às atmosferas de John Ford, “Na pista de Fort Apache”, desenhado por José Ortiz, que me rendeu o único tapinha nas costas que ganhei de Sergio Bonelli, notoriamente mesquinho com elogios. Adoro histórias complexas, mesmo que sejam difíceis de fazer, mas quando funcionam, tenho orgulho delas, como “Manhattan”, a história em quatro partes, "Nova York", que fiz  para o Maurizio Dotti, ou “Os sabotadores”, para Leomacs. Atualmente, eu coloquei no pódio de maior sucesso a dramática "Lua Encarnada”, com arte de Corrado Mastantuono. E aí a juventude de Tex na nova série Tex Willer também deu nova vida para mim mesmo, por isso escolho, dessa série, “Pinkerton Lady”, com arte de Roberto De Angelis e “Na Terra dos Seminoles”, com arte de Michele Rubini. Das outras séries, tenho um fraquinho pela história da família do Tex, em “O Nascimento de um herói", desenhado por Del Vecchio, para o livro de capa dura colorido “Pearl Hearth - Rápida e Mortal”, com arte de Laura Zuccheri, e para o curta “Herói por acaso”, com arte de Stefano Andreucci, que apareceu num antigo Almanaque do Oeste. As pessoas costumam me falar que o Texone “Patagonia”, com arte de Pasquale Frisenda, também não é ruim. Mas aqui eu paro ou acabo listando todos ou quase todos! Na verdade, como bom pai, também tenho uma fraqueza por quem não é perfeito, visto que os desenhos dos meus incomparáveis ​​​​colaboradores muitas vezes os tornam melhores e mais agradáveis para mim, até os roteiros que estão um pouco "mancos" (e espero que também para os leitores).



JORGINHO:  Quais escritores do Tex você segue e mais admira?

MAURO BOSELLI:  Gianluigi Bonelli, claro! Se não fosse por ele, você e eu não estaríamos aqui! Li e reli “Nas encostas do Norte”, “Diablero”, “A armadilha”, “A cela da morte”, “Negro Barão” e muitos outros. Quando li Tex originalmente, ele era o único escritor. O outros são meus “contemporâneos” e não posso trazer preferências aqui, assim como não posso fazê-las para outros desenhistas. Mas em Tex, os roteiristas que produziram muito estão nos dedos de uma só mão: Guido Nolitta, vulgo Sergio Bonelli, meu grande amigo e editor; Claudio Nizzi, ao qual eu liguei para ele escrever, embora ele tenha saído novamente; e Pasquale Ruju, meu braço direito insubstituível. Berardi escreveu apenas uma história, "Oklahoma", mas uma história memorável e uma grande inspiração para mim. Tenho grandes esperanças nos novos: meu assistente Giusfredi, que deu boas evidências; Rauch, já experiente em Zagor; e o estreante Barbieri.

JORGINHO: Quais são os seus planos para o futuro?

MAURO BOSELLI: Descansar! Bem, isso não é inteiramente verdade... Talvez eu me aposente como curador e editor, porque é muito cansativo ler, corrigir e mandar para a banca mais de seis mil páginas novas todos os anos, mas tentarei escrever mais histórias, como as que estou preparando atualmente para Dotti, Andreucci, Rubini, Atzori, Ghion, Masala, Mastantuono, Gomez, os Cestaros, Brindisi, De Angelis, Torricelli, Benevento, Venturi e Ticci!

JORGINHO: Deixe sua mensagem para o leitor brasileiro que tanto te admira e ama o seu trabalho.

MAURO BOSELLI: Itália e Brasil estão ligados pela paixão por Tex, personagem em teoria anglo-saxão, mas que na verdade tem alma latina! Amigos brasileiros, espero que continuem aproveitando suas aventuras por muitos anos!


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"Em suma, eu teria contado histórias mesmo que, por sorte, nunca tivesse tido a oportunidade de escrevê-las... Quanto à minha atitude perante avida
e a profissão, eu faço d
o meu lema o que vi escrito na parede de uma escola primária perto da minha casa, e é dedicado para Martin Luther King:
“O que quer que você se torne, seja ao máximo!”
- Mauro Boselli


Jorginho

Jorginho é Pedagogo, Filósofo, graduando em Artes, com pós graduação em Artes na Educação Infantil, ilustrador com trabalhos publicados no Brasil e exterior, é agitador cultural, um dos membros fundadores do ColetiveArts, editor do site Coletive em Movimento, produtor do podcast Coletive Som - A voz da arte, já foi curador de exposições físicas e virtuais, organizou eventos geeks/nerds, é apaixonado por quadrinhos, literatura, rock n' rol e cinema. É ativista pela Doação de Órgãos e luta contra a Alienação Parental.

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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