Do Papicu pro mundo – ou: Carta para Karim
Você não sabe, mas nossos caminhos já se cruzaram duas vezes. Isso até onde eu sei. A primeira vez foi em Berlim, minha terra natal. Eu morava lá ainda, e você, já. Engraçado como os advérbios temporais fazem toda a diferença. Graças a essa coincidência e a um convite da Zinka – que acredito ser também amiga sua, outra coincidência –, fui a uma roda de conversa com você n’A Livraria. Deve ter sido em 2016, acho que era inverno, fazia frio. Na época, eu já namorava a Larissa, já dançava forró e já estava doida pra vir-me embora pra cá.
E sete anos depois, nossos caminhos se cruzaram de novo; desta vez em Fortaleza, sua terra natal. Foi bonito ver como você é bem-quisto aqui, como a sala de cinema vibrou com sua presença: Karim está aqui! Karim é nosso, é do mundo, mas também nosso! Te perguntaram se você achou seu lugar no mundo e você respondeu que a gente não precisa escolher um lugar só. O mundo é nosso. Achei bonito. Bonitos também são seus dois filmes que passaram no Cinema do Dragão, antes da roda de conversa.
Nardjes A. pra mim foi uma crônica audiovisual, a crônica de um protesto. Sem dúvida, uma crônica política também. E Marinheiro das Montanhas, uma crônica de viagem! Uma viagem, também, para dentro. Entre cartas queimadas de conteúdo misterioso – e o que seria o amor sem mistério? –, fotos antigas dos seus pais, saudade da sua mãe, descobertas familiares em Cabília e a guerra pela independência argelina, você nos leva ao encontro com suas raízes, ao encontro com suas memórias e não-memórias de uma infância na Argélia, coisa que você não teve. Como seria sua vida, você se pergunta, se tivesse crescido lá mesmo, do jeito que seu pai prometeu para sua mãe, nesse vilarejo afastado, onde todo mundo é Aïnouz. E responde a si mesmo que, nesse caso, agora estaria se perguntando, olhando para aquelas montanhas nevadas, como teria sido crescer em Fortaleza, nesta cidade quente de Iracema, banhada pelo mar.
Essa reflexão ecoou tanto em mim, talvez porque minha avó sempre dizia que por pouco não nasceu no Brasil – o avô dela, que veio fugindo da fome no final do século XIX, morreu de doença antes de poder trazer a família. Mas, e se ela tivesse mesmo nascido aqui? E se eu tivesse nascido aqui? Certamente acharia que em Berlim, no inverno, faz um friozinho gostoso... Fato é que o “e se...?” sempre nos move, né? Quando eu me mudei pra cá, seguindo meu coração, minha avó já tinha falecido. Mas penso que, de alguma forma, ela se sentiria realizada. Mesmo que, depois da sua morte, a gente tenha descoberto que, na verdade, esse meu tataravô emigrou foi pro Chile, não pro Brasil, mas essa é outra história...
Entre todas as paisagens impressionantes, histórias pessoais e familiares, reflexões políticas e filosóficas, junto com algumas pitadas de humor – no fim das contas, você não deixou de ser cearense –, quero lhe falar de um detalhe do filme que me deixou especialmente surpresa e contente. Você vai rir, porque é uma besteira. Mas é que, no meio dessas paisagens e histórias e reflexões e tudo, você diz que teve uma infância muito feliz morando com sua mãe e sua avó na Avenida Engenheiro Santana Júnior. Ou seja: você cresceu aqui no Papicu! E bem pertinho de onde a gente mora! Fui logo mandar essa notícia no meu grupo de escritores-amigos: “Genteeee, vocês sabiam que o Karim é do Papicu???” Só para receber uma mensagem do Paulo: “Sim, foi meu colega de natação, na época do BNB Clube”. O Paulo sempre ganha de mim: eu toda me sentindo, porque piso diariamente nas mesmas ruas que já foram suas, e ele até já dividiu altas águas de piscina com você! Sei não, viu.
Mas a coincidência – mais uma – essa ninguém tira de mim: você saiu do Papicu pra ir morar em Berlim, e eu saí de Berlim pra vir morar no Papicu.
O mundo é nosso, brindemos!
Yvonne Miller Foto: Thaís Vieira |
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