O dia em que fui Colt Seavers
Nos anos 1980 as televisões eram recheadas de programas infantis com desenhos animados: na Manchete tinha o Clube da Criança e o Circo do Carequinha; na Globo A Turma do Balão Mágico, e no SBT, o Bozo. Durante todo o dia a programação era bombardeada por propagandas de brinquedos, jogos e artigos infantis. Sim, naquela época podia. Haviam brinquedos de toda a espécie, mas os que me chamavam a atenção eram os baseados em super heróis dos quadrinhos, dos desenhos animados e das séries de tv.
Como já falei antes, a minha infância foi passada em Alvorada, cidade que faz parte da região metropolitana de Porto Alegre/ RS, cidade que era muito pobre, e nós éramos pobres. Adquirir certas coisas naquela época era muito difícil. Eu ficava vidrado na televisão, e pedindo para minha mãe um furgão do Esquadrão Classe A, uma Supermáquina à fricção, um boneco do He-Man, uma pickup do Duro na Queda, um boneco Playmobil, e ...é claro que eu não ganhava.
Em um Natal, o menino que morava na frente da minha casa, o Daniel, ganhou uma camionete da série Duro na Queda, que era uma GMC Sierra marrom com as laterais douradas, com uma águia pintada no capô (essa águia era a logomarca da empresa de Colt Seavers-o protagonista da série), chamada "Fall Guy". Grande, bonita e resistente, e ele a puxava com uma cordinha para cima e para baixo, fazendo-a dar pulos nos barrancos, andar pela areia, no meio do barro, na água, era uma diversão enorme que eu, com inveja, ficava olhando da cerca da minha casa.
Naquele Natal eu ganhei um carro de bombeiros, simples, sem nada demais. Brinquei com ele só no dia em que ganhei. Eu sonhava em ganhar aquela camionete, imaginava eu a ganhando, abrindo o pacote de presente e brincando, puxando a sua cordinha para cima e para baixo. Eu não ganhei.
Passaram-se alguns meses, e minha dor de não ter ganho havia diminuído, a inveja não.
Mas então houve um aniversário na casa do Daniel e minha mãe levou a minha irmã e eu.
Daniel ganhou muitos brinquedos, minha irmã brincava com as meninas e eu era muito tímido, ficava olhando o Daniel e os seus convidados brincando com seus brinquedos novos. Ele me convidava, mas eu só olhava; foi então que Dona Tereza, a sua mãe, uma das mulheres mais fantásticas que eu conheci em toda a minha vida, perguntou se eu não queria brincar com o carro que estava ali, jogado na área. Titubeei, mas ela me incentivou: "vai lá, pega!", e eu fui.
Puxei pela cordinha, levei a camionete até o pátio e então a magia aconteceu: eu não era mais o Jorginho, eu era o dublê Coult Seavers dirigindo a sua camionete em suas aventuras. Eu cantarolava o tema da série, subia com ela na areia e na grama, fazia dar cavalinhos de pau, conversava sozinho com meus parceiros imaginários. Passei a tarde toda brincando, apenas eu e ela. Eu simplesmente me esqueci que havia uma festa de aniversário e que haviam outras crianças.
Quando minha mãe me chamou para ir embora, guardei-a na área da cozinha com todo o cuidado, afinal eu estava estacionando o veículo encantado, que havia passado por poucas e boas durante aquela tarde. Abracei a dona Tereza muito feliz e ela riu, disse que podia voltar para brincar com o Daniel e com o carrinho.
Eu não brinquei mais com a camionete e eu não fiquei mais com aquela inveja, claro que eu brinquei muitas e muitas vezes com Daniel. Quando eu via ele saindo para ir ao armazém comprar algo com ela, eu ficava feliz de vê-la passando na rua.
Os anos se passaram e recentemente fizeram um remake de Duro na Queda. No Brasil rebatizaram de O Dublê (preferia o charmoso Duro na Queda), confesso que eu ainda não vi. Quando eu assisti ao trailer, me deu saudades da Dona Tereza, do seu sorriso e do enorme presente que ela deu para aquele guri, que era o convidado numa festa de aniversário: ela o deixou ser Coult Seavers por uma tarde, mágica e inesquecível .
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Arte: Lisi Olsen "Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância." - Ricardo Mendes |
1 Comentários
Muito legal na semana da criança essa lembrança. Parabéns.
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