Um sonho tão cinzento
Parte -2
– Thiago... você sabe que não posso ficar muito tempo, não sabe? É perigoso... - diz ela, olhando para um ponto longe no quarto, sua expressão se torna turva.
– Sei... mas não vá agora! Não tão cedo... S-sentirei saudade... você volta? - diz ele, apreensivo, segurando sua mão firmemente.
– Não sei... farei o possível... Também sentirei sua falta. - diz ela, enquanto cora as bochechas do rosto. Era tão estranho ver sua pele, quase branca que nem papel, ficando num tom alaranjado.
Os dois continuam montando o personagem, de repente a menina começa a se sentir mal. Põe as mãos sobre o estômago, que faz barulhos, e se afasta dele até a outra ponta do quarto. Ele levanta-se para tentar ajudá-la “Lâmia!” grita, mas ela apenas ergue uma das mãos para cima e faz um gesto de distância. Ele paralisa como estátua, quase branco, o medo surge claro em seus olhos. Medo do que, me pergunto?
A menina sai correndo do quarto. Eu quero abraçar o menino, seu rosto caído me lembra muito o do vovô, nas vezes em que para no meio de uma brincadeira e encara o horizonte da sala. Uma vez perguntei o que ele tinha, mas sempre me respondia que não era nada, mandava-me ir brincar e permanecia absorto nos seus pensamentos.”
De repente um grito sai do andar de baixo, por ser a mesma casa, adivinho que saiu da cozinha! Thiago desgruda do lugar e corre até a origem do som. Vou atrás. Quando entramos, dou de cara com um corpo ensanguentado no chão, tem sangue por tudo, como aquelas salas muito geladas onde guardam a carne de boi. Eu entro em choque, quero acordar! Quanto sangue! Sei que é um sonho, mas estou presa naquele transe cinzento. Por sorte, cada vez a neblina fica forte em volta de mim. Eu vou acordar! A menina dos cabelos acinzentados olha para o corpo, seu vestido de veludo verde carregava gostas grossas de sangue empapadas pela fronte. Ela dá alguns passos e as gotas caem de sua boca.
– Thiago, me desculpe... - diz ela, entre soluços – me desculpe! Eu não pude evitar.
– O que você fez?! Minha mãe... minha mãe, não! – ele cai de joelhos sobre o que restava do corpo.
– Eu estava com fome... ela apareceu! Viu? Eu disse que era perigoso... nós... você… eu… é perigoso!
– Vai embora! - ele vocifera com raiva. Os maxilares apertados como se agora ele quem fosse morder – Vai embora! Não volte nunca mais! Eu te odeio!
– Mas... Thiago... eu...
– Eu te odeio! Vai embora, monstro! Vai! Monstro! – ele vira o rosto para o lado, com muita dor.
Ela, então, sai correndo da cozinha, passando por mim. Suas lágrimas ainda ficaram no chão, misturadas ao sangue. Tento segui-la até a saída da sala, mas ela correu mais rápido. A última coisa que vejo são seus cachos cor de fuligem voando sobre o portão de ferro rangente.
Acordo num grito. O sonho acabou. Tateou à procura da personagem do meu sonho, mas ela não está mais onde a deixei. Vovô a encontrou? Acendo a luz do quarto, tropeçando no caminho. Nada, a boneca não está mais ali. No seu lugar está a menina do sonho. Gelo em frente a cama, olhando para aquela imagem que agora é real. É real sim! Eu tenho certeza de que não estou mais sonhando.
– Eu não quis fazer mal algum. Não foi culpa minha – diz ela, com o olhar triste – sou amaldiçoada, não há outra forma de me alimentar além dessa. Entenda, portanto, o que se sucederá agora – Aos poucos foi se aproximando de mim no seu andar leve, silencioso e atraente, como o cair das cinzas quando o incêndio cessa. Não pude mais sair do transe, a brincadeira cinzenta me prende até o fim!
FIM
Miriam Coelho |
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