O UNIVERSO CONTA

 

Na penúltima plataforma da estação 

de trem da cidade

Parte -2

– Fiquei uma hora esperando... – comentou ele, me olhando entre os cabelos que tocavam os ombros, enquanto caminhávamos pelo saguão. Seu olhar parecia me atravessar. Fiquei mais nervosa ainda.

– É-é q-que teve dois acidentes na estrada, foi um horror! – Gaguejei… eu pegar o ônibus com aquele motorista era um dos acidentes e a leve caída de um motoqueiro foi o outro. Não quis comentar sobre a demora do ônibus. 

Passamos pela bilheteria, pela roleta e fomos em direção aos trens, a ideia era sentar nos bancos e conversar, talvez observar as pessoas, o entra-e-sai das locomotivas, as vidas tão incógnitas e insignificantes que passavam por nós. Qualquer uma daquelas pessoas poderia desaparecer num passe de mágica e nem levantaríamos do banco para procurá-la, mas ela com certeza faria um imenso buraco de dor na vida de outras tantas, que também desconhecíamos. Essa insignificância alheia me intrigava, do mesmo jeito que qualquer coisa que se movimente intriga um gato. Observei-as com certo divertimento e adivinhei suas vidas, idealizei condições interiores de suas mentes, cheguei a sentir um rápido medo de que fossem apenas figurantes de alguma “Matrix”... Enfim, ideias de uma menina de 20 anos. Aquele calor seco e mormacento estava me deixando confusa. Hora a plataforma enchia, hora esvaziava como a maré da praia.

A tarde estava indo e conversamos sobre várias coisas, ele observava meu rosto como um colecionar apaixonado examinando a escultura rara para completar sua coleção. Meu coração batia naquela presença de olhares fulminantes. Ele falava de algo relacionado a ele e suas crenças, enquanto eu balançava minha cabeça com credulidade e profunda admiração. Coloquei a mão em frente ao rosto e ri do cenário completo, parecia uma entrevista!, só ele falava e eu não tinha forças ou coragem de interromper com as minhas histórias. Quando ele virava para o lado oposto, escondendo o rosto novamente, eu podia observá-lo sem medo. Quando seria a próxima vez que nos veríamos? Por que eu sentia tanto medo e me retraia na presença dele? A tarde descia e a despedida já se aproximava, eu não podia voltar muito tarde para casa, porém não queria ir ainda.

No meio de uma das nossas discussões, um tanto filosóficas, olhei para o relógio do celular, a noite caía firme, e anunciei que já se aproximava da hora de irmos embora. Repentinamente, ele tocou no meu rosto! Carregava uma expressão de quem não ouviu uma palavra do que eu disse antes, e eu paralisei quase sem respirar, era a primeira vez que ele tocava em mim, depois de muitos anos. Alisou sutilmente minha face enquanto eu corava (ou era sua mão que esquentava minha face?) não senti força alguma em mim para me mexer ou me afastar, apenas meu rosto pegando fogo. Já não havia pessoas em nossa volta, nem nos bancos nem na plataforma, e no fundo do túnel o barulho de trem se aproximava tão abafado que demorei a notar, as batidas fortes do meu coração ensurdeceram o barulho do redor.


Mas antes que eu pudesse tentar recuperar os movimentos do meu corpo, só pude ver o brilho de algo vindo na minha direção, um raio afiado e doloroso, decepando minha cabeça por inteiro, foi tão depressa que nem pude me defender! Quis mover meu corpo e já era tarde de mais, estava incompleto; ele o jogou nos trilhos e o trem terminou o serviço nas rodas dos vagões. Minha cabeça ficou nas mãos dele, ainda viva, na mesma expressão de timidez e nervosismo de outrora. Ninguém mais viu o que aconteceu.

Aqui, no seu quarto o observo de cima dessa pequena estante empoeirada, ele me observa várias vezes também, tantas trocas de olhares sem palavras... Às vezes ele recita versos de Nietzsche, voltado para a janela, de costas para mim, e depois vira e me encara mudamente, seus olhos num brilho intenso e incógnito. Junto a mim, brigando por espaço, alguns discos dos deuses do rock dos anos 60, os vários cadernos com anotações e pensamentos dele, toda a coleção de psicanálise de Freud e a faca preta de açougueiro, já limpa, já polida, esperando pela próxima vítima, ou não? E meu corpo ficou jogado, perdido na lembrança da noite, na penúltima plataforma da estação de trem da cidade.

FIM


Miriam Coelho


"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

COLETIVEARTS, 06 ANOS DE VIDA,
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