Esse tal “lugar de fala”
Uma amiga (não vou revelar o nome) contou-me uma história triste que retrata de forma emblemática a vida de muitas mulheres que aceitam a condição de “do lar”, submetendo-se ao mando do marido e senhor, único provedor da sua vida e da vida dos seus filhos, anulou-se enquanto pessoa capaz de viver além daquele horizonte restrito. Ocorre que, não raros os casos, este marido, com o avançar da idade, acaba trocando de esposa, como quem troca de carro, por um modelo mais novo, relegando aquela mulher a uma condição de penúria. Poderiam perguntar, mas por que esta minha amiga não escreveu sobre este assunto, sabe como é que é, tipo Marisa: “de mulher para mulher”? Afinal, uma mulher sabe muito mais sobre a condição feminina do que um homem, não é mesmo?... Pensando melhor, será que basta nascer mulher para ter uma consciência feminista? Basta nascer pobre para ter consciência de classe? Basta nascer negro para ser antirracista? Basta ser judeu para não repetir as práticas nazistas? Basta ser homossexual para não apoiar políticos homofóbicos? Basta ser professor de escola pública para seus filhos estudarem na escola pública?
São perguntas que remetem à outra pergunta: de onde nasce a consciência? Corro o risco de ser contestado ao considerar que a consciência não nasce, como se fosse uma incomoda espinha no rosto, e nem cai do céu, tal qual uma chuva de verão. A consciência é construída a partir das nossas vivências, isto mesmo: no plural! Nossas relações com os outros (a maneira como interagimos com outros e como os outros interagem com a gente forma, em muito, a nossa consciência) e, é claro, o que fazemos para ganhar a vida. O trabalho nos insere na produção de uma sociedade. A nossa tarefa no processo produtivo é um dos fatores que moldam nossa maneira de pensar. O modo de produção, ou seja, a maneira como uma sociedade se organiza para produzir a sua existência exerce uma forte influência no pensamento de uma sociedade. Pensamos do jeito que pensamos por que vivemos neste período histórico, se vivêssemos como escravos romanos ou como camponeses feudais certamente pensaríamos de outra maneira, veríamos o mundo com outros olhos, nosso grau de informação seria infinitamente mais reduzido do que o existente hoje. O meio forja a consciência, não é mesmo?
Aí é que está o grande barato da vida! As coisas não são simplesmente automáticas. Mesmo escravizados pelos romanos, os liderados por Spartacus se revoltaram e abalaram um império ao lutarem pela liberdade. Os servos, na Europa feudal, se revoltaram contra a exploração dos senhores feudais, não aceitando aquela vida de injustiças e miséria. As revoltas, abundantes ao longo da história, demonstram que a insatisfação diante de uma realidade já é o início da construção de uma nova consciência, quando a percepção diante da vida se amplia, superando a “consciência em si” (conhecimento sobre a sua realidade) e transformando-se em “consciência para si” (que tipo de nova realidade se quer construir)
Portanto, a vida não é uma simples lógica de causa e efeito, há muitas variáveis envolvidas... Há o inesperado!
As contradições internas da nossa sociedade, inerentes as desigualdades sociais produzidas e aprofundadas no nosso modo de produção capitalista, somadas aos valores e informações transmitidas pela religião, pelo “papo” daquele amigo no bar e pelos meios de comunicação de massas (que mais ocultam do que revelam) “fazem a nossa cabeça”.
Ampliar a consciência vai muito além dos limites da nossa caixinha, onde se reduz a nossa vida no dia a dia, naquela rotina muitas vezes massacrante que tritura os nossos sonhos e desejos mais secretos. É preciso ler mais e conhecer pessoas que tenham algo a acrescentar às nossas existências. Colocar- se diante da vida disposto a aprender e ensinar no processo dialético de libertação é fundamental.
Aqui eu retorno ao início: o tal “lugar de fala”. Penso que não é preciso ser mulher para escrever sobre a condição da mulher, até porque já vi muitas mulheres na política implementarem projetos que ampliaram a exploração da classe trabalhadora (Margareth Tatcher, na Inglaterra, e Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul) portanto, não adianta simplesmente votar em mulher é preciso saber qual o projeto político que a dita cuja defende.
Desde as duas guerras mundiais, quando os homens foram convocados para lutar, as mulheres foram convocadas para o trabalho nas indústrias e isto ampliou imensamente o grau de consciência e autoestima sobre o poder feminino, além do que, se as mulheres servem para produzir (e não só reproduzir) também servem para votar e serem votadas.
Mesmo algumas pessoas acreditando que lugar de mulher é em casa, esquentando a barriga no fogão, esfriando no tanque e que azul é menino e rosa é menina, o movimento que luta pelo respeito e dignidade às mulheres segue porque “quem não luta pelos seus direitos não é digno deles” e, meus amigos, a libertação da mulher é a libertação da humanidade e a humanidade é o meu lugar de fala.
NESTOR OURIQUE MEDEIROS |
1 Comentários
Muito bom! 🥰😘
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