
Amizades mais duradouras, parcerias analógicas em tempos de cumplicidade digitais e a falta de solidez de um verdadeiro camarada
Hoje o dia amanheceu com uma névoa, repleta de saudosismo e nem falo de um saudosismo que flerta com conservadorismo, destes que estufam o peito e bradam pela volta do AI-5 ou vociferam tomados de certezas e verdades absolutas que "Bom mesmo, era no meu tempo" ou "Eu que sei!" "Música boa era nos anos 80, né?".
Aliás, tenho aqui minhas ressalvas sobre o mercado fonográfico acerca desta superestimada década. Bem, mas prefiro deixar para uma ocasião mais oportuna tal pauta.
Não me interpretem mal, achando que me faço valer das minhas mais de sete décadas, achando que com isso por si só, seria sinônimo de sabedoria. Não, isso só seria uma idiotice septuagenária e nada mais.
Mas vamos aos fatos e os motivos que me levaram a escrever essas mal traçadas linhas.
Escutando a canção "Doze Anos" do genial Chico Buarque, música essa que íntegra o repertório do álbum "A Ópera do Malandro" em suas reminiscências o compositor carioca também nos convida a revisitarmos nossa infância e percebermos o quão os tempos realmente são outros e os nossos ídolos inegavelmente não são mais os mesmos.
Sinto saudade do cheiro da grama e até mesmo das famigeradas coceiras angariadas das intrépidas defesas feitas nos jogos de "gol a gol", as acirradíssimas disputas no gramado do campo próximo da casa, onde muitas inimizades se formaram mas outras tantas amizades se consolidaram, aquele cenário clássico das equipes de "com camisas X sem camisas" e até mesmo os insalubres banhos de arroio.
Num desses domingos de verão, tipicamente escaldante como é a nossa estação nesta época do ano, fui tratando de intimar coercitivamente meus sobrinhos e afilhados a darmos uma volta no tradicionalista "Brique da Redenção" no Parque Farroupilha na capital gaúcha, quando avistei uma imponente árvore de amora e não titubiei em fazer um inusitado pedido aos moleques que me acompanhavam: "Olhem ali um pé de amora?!" Disse eu, certo que eles compreenderiam de bate-pronto meu deslumbramento pela escassa fruta descoberta em Porto Alegre.
Mal sabia eu, que estava na eminência de vivenciar meu primeiro conflito geracional.
Logo depois de apontar a saborosa fruta, fui logo sendo questionado: "Mas o que seria amora Tio?" perguntou um dos meus convidados.
Expliquei pacientemente, e pedi educadamente que um deles ou todos eles, pegassem umas frutas pra degustarmos.
Eles se entreolharam, incrédulos e num misto de surpresa, desconhecimento, perplexidade e em tom negativo, responderam em uníssono: "Tá, mas como faremos?"
Estupefato com a resposta, tratei de não demonstrar espanto e insisti:
"Ok, mas vocês não sabem mesmo subir naquela pequena árvore?", ainda surpreso, indaguei e logo percebi que eu nem deveria ter perguntado, já que fui logo sendo bombardeado com um estrondoso "Não" de todos.
Naquele exato momento, me dei conta que não existem mais moleques como antigamente ou adeptos desta prática.
Dito assim; certamente paira a desconfiança de que com minha avançada idade, eu tenha me tornado alguém que vive do passado, um típico retrógrado, reacionário que se acha o "tiozão descolado".
Então, se você pensou isso, sigo irredutível em te alertar: estas completamente equivocado.
Inevitavelmente há gritantes diferenças de uma geração para outra e isso acontece, desde que o mundo é mundo.
Ouçamos sempre os mais novos, respeitamos sempre nossos ancestrais, compartilhamos com os mais velhos e nem sempre isso quer dizer mais sábios.
Há evidentemente uma nova geração muita mais atenta às novas tecnologias e com esse advento também obviamente terão menos contatos presenciais .
Portanto, esqueça a clássica parada na esquina do seu bairro pra colocar a conversa em dia e ao invés de WhatsApp seria um confidência ou até mesmo uma piada (na maioria das vezes de mal gosto) entre seus pares. Sonhos divididos, realidades compartilhadas, descobertas e dissabores longe das telas, perto de amigos reais, as verdades muitas vezes às duras penas, ditas olhos nos olhos.
Flertar era algo original e analógico, como era feito nas inesquecíveis "reuniões dançantes" algo démodé pros dias de hoje.
As novas gerações são mais desconstruídas de preconceitos, isso é fato e um grande avanço. Certamente, não foram eles os responsáveis por nos fazerem viver aquele triste período obscurantista.
Possuem mais fluidez nas efêmeras relações, mas também parecem possui menos consistência no engajamento das artes, principalmente quando o assunto é música, vide a ascensão do "sertanejo universitário" que nunca se forma e que ocupa a condição de produto de massa deste país a quase 20 anos. Valei-me Deus!
Essa geração tem pressa, não raro encontrar alguém que consiga saborear um bom álbum (Disco e/ou LP) na íntegra do inicio ao fim.
Por certo, fica evidenciada algo que passo a chamar de timidez digital, algo que é oriundo certamente da escassa e severa falta de celebrarem a vida juntos sem gibaytes, sem Wi-Fi, avesso as redes sociais exercitando a fala e flertando novamente com sentimentos analógicos.
Tá bom, tá bom, já estou sendo muito insistente nos meus apelos.
Mas quem quer seja, o detentor do tempo, poderia ao menos reconsiderar a volta do "Futebol de botão" e do "Três dentro e Três fora", ou quiçá "Pés de Chorão" que entoavam uma melancólica melodia nas noites de intenso inverno e ventanias, os vagalumes que acabaram indo pra algum lugar distante e desconhecido.
Afinal, já vimos até atípicas solicitações em frente aos quartéis pelo retorno de brincadeiras em que pese nada sadias e muito menos democráticas.
Enquanto escrevia essas mal traçadas linhas o combativo Zelito Vitrola dava uma trégua aos seus atentos ouvidos e sua vitrola tocava a canção "Doze anos" de Chico Buarque.
Spotify AQUI
![]() |
Zelito Vitrola |
0 Comentários