TECITURA

 

O canto do Cardeal




Meu pai era um cara interessante. Simples assim! Adorava ler, sempre com a Zero Hora
embaixo do braço, para manter-se atualizado. Debatia qualquer assunto! E fã do Tex! Gostava dos quadrinhos, em especial Tex e Zagor ... encadernações de bolso, impressos em papel jornal, desenhos em preto e branco, sempre com uma edição nova nas bancas. Por estas influências eu aprendi a ler muito cedo, despertou uma curiosidade imensa para saber o que estava escrito ali, naqueles “balões” em cima dos desenhos. E gostava dos filhos à sua volta. Ele era um profissional da construção civil, Mestre de Obras e Eletricista. Com o tempo e meu avanço nos estudos, tomei contato com várias obras literárias, e uma eu associava ao meu pai. Imaginava-o sendo o personagem pensado por Vinícius de Moraes quando escreveu a obra O Operário em Construção. Era assim como eu via meu pai.

Altair era seu nome, assim como de meu avô, mas eles eram chamados pelo apelido de
Ataíde. Ataíde e Taidinho (meu pai). Eu nunca entendi o apelido deles, não tinha nada a
ver com o nome. E minha mãe não quis que seus filhos se chamassem Altair, senão seria uma dinastia! Kkk ... Enfim, homem de hábitos simples, desde criança tinha um hobbie. Era passarinheiro. Orgulhava-se de seus passarinhos, todos muito bem cuidados. Hoje esta cultura está em desuso, não se vê mais tantos passarinheiros como antigamente, até pela consciência atual sobre a questão de animais em gaiolas. Mas a época era outra, a cultura era outra, e meu pai cuidava, conversava, tinha orgulho de seus passarinhos. Tinha sabiá, azulão, coleirinho, canário, canário da terra, mas um era seu preferido. Um era especial. Meu pai tinha um Cardeal! Um animal magnífico, majestoso, lindo. Mas o canto! Era como ouvir anjos! Uma das coisas mais belas da natureza, o canto do Cardeal é algo de extraordinário. E seu Altair, religiosamente, às 5hs da manhã, verão ou inverno, estava em pé, tomando seu café e escutando o canto do Cardeal. Todo dia, às cinco horas da manhã, o Cardeal cantava. Despertava, cantava, era um show! E meu pai adorava aquilo! Eles tinham uma sinergia, parece que o Cardeal fazia aquilo para agradar seu dono. Dono um modo coloquial de dizer, pois uma maravilha da natureza como aquela não pertencia a ninguém. Era um animal magnífico! E o Cardeal era um animal arisco. Brabo! Não “vinha” com mais ninguém a não ser o meu pai. Atacava quem ousasse botar a mão em sua gaiola, com bicadas, asas eriçadas, um verdadeiro animal de rinha! Menos meu pai. O Cardeal pousava na mão de meu pai, que adorava acariciar seu peito, sua cabeça, conversava com ele, e o mais interessante, dava a impressão que ele respondia. Meu pai sempre falava que havia pego o Cardeal ainda no ninho três meses antes de minha irmã nascer. Ou seja, ele era o filho mais velho de meu pai, seu primogênito!

Porém, houve um período em que esta preferência foi compartilhada. Temos uma miga, a Lidiane, filha do seu Zé do Café, moradora na época da Rua Juventus, aqui perto de casa. Lidiane tinha uma cadela linda, pastora alemã capa preta! E seu pai, seu Zé, cuidava daquela cadela, e como! Queria muito cruzar ela com um cão da mesma raça, ter uma ninhada de pastores alemães capa preta. Mas tinha um vira-latas na rua ... danado! Era um insubordinado, um ousado, um vira-latas caramelo! E num momento de descuido de seu Zé, em época de Cio, e a pastora alemã perdeu a castidade. Para um Vira-Latas Caramelo! Meses depois, a ninhada ... uma linda ninhada mestiça e multicolorida! E assim, o grande amigo de meu irmão, Ordilei, ganhou a Diana, parecida com a mãe, mesma pelagem de um pastor capa preta porém de menor porte ... e nós ganhamos o Negrinho!

Negrinho era daquele tipo de cachorro ... porte médio, pelagem escura e curta e céu da
boca preto. Cachorro bravo! Bom para guarda do pátio, dizem os conhecedores. Diana,
sua irmã, foi criada dentro do pátio, sempre com portão fechado. Era a supra sumo da ignorância canina, muito brava! Mas Negrinho foi criado na rua. Jogando bola comigo, meu irmão e nossos amigos. Sim, naquela época os muros eram baixos, ficávamos na rua até tarde, geralmente jogando futebol, vôlei e coisas do tipo. E Negrinho era xará de todo mundo ... menos do Marquinhos, meu primo. Não entendo a razão, Negrinho sempre teve implicância com o Marquinhos. Ali nasceu uma nova paixão para meu pai. Negrinho era nosso, mas também era dele. Negrinho era o cachorro de meu pai, tal a adoração que o cão tinha por ele e o companheirismo. Sempre ao lado do pai, Cardeal arrumou um adversário de peso! E assim o tempo passou.

Com os anos, meu pai ficou muito doente. Várias vezes Negrinho chamou-nos dentro de casa para socorrer o pai, que desfalecia nos fundos do terreno. Meus pais adoravam
plantar. Tanto o pai quanto a mãe tinham por hábito cultivar hortas, plantas. Meu pai não conseguia mais trabalhar, mas passava seu tempo cuidando das plantações e de seus bichos, “conversando” com o Cardeal, os canários e demais pássaros, e sempre com Negrinho à sua volta. Aquele cachorro só faltava falar! A esta altura eu já havia iniciado uma carreira, técnico de campo de uma multinacional, tinha um ótimo salário. Minha irmã também trabalhava e meu irmão era cotista do Senai. Conseguimos manter a casa, casa esta projetada e construída pelo meu pai.

E assim foi, em março de 1995 o Sr. Altair teve uma parada cardiorrespiratória e evoluiu para outro plano. Gosto deste termo, meu pai seguia a doutrina espírita, e era assim em sua crença ... uma evolução! Gosto desta ideia. E acredito que, realmente, há algo de extraordinariamente verdadeiro nisso. Há mistérios que não conseguimos explicar! Após a morte de meu pai, o Cardeal parou de cantar. Uma depressão ocorrera, esta foi a impressão. E o Cardeal, volta e meia, dava uma entoada, um arremedo de canto, mas não ouvimos mais as elaboradas e belas cantorias dele. E Negrinho. Era um cão alegre, ativo, sempre em prontidão. Mas também sentiu a falta de seu dono. Meu pai gostava de usar chinelos de couro, e Negrinho pegou um dos pés de um dos pares de chinelos do pai, e levou para sua casinha. Dormia sempre com o chinelo do pai junto

Estava eu casado já com a mãe de minha filha, com a Juliana em seu ventre. Morávamos na Cidade Baixa, bairro de Porto Alegre, e lembro bem estar atendendo um chamado técnico em meados de 2001, não lembro o mês. Estava no Bradesco de Gravataí, e terminei cedo o serviço. Deu uma vontade de visitar a casa, a mãe. Meu irmão também havia casado, e sua esposa também estava grávida, tinham se mudado para nossa casa, construíram uma casa onde ficava a horta do pai. Cheguei de surpresa, sem avisar, a mãe me atendeu, surpresa também. Havia dois homens na casa aos quais  eu não conhecia. Um era veterinário e o outro, seu ajudante. Haviam passado alguns anos desde a morte do pai, mas Negrinho ainda estava lá. Tinha por volta de quatorze anos, era um animal forte, robusto. Mas havia contraído uma doença de pele. Eu estava ajudando no tratamento, a mãe tentara de tudo. Vacinas, remédios, unguentos, sabedoria popular. Mas aquela doença não curava, a pele rachava e o cachorro estava sofrendo. Assim, os veterinários não viram mais solução e sugeriram a eutanásia como a forma mais humana de tratar com a situação. A mãe marcou uma data e horário sabendo que meu irmão e a esposa não estariam em casa, e eu, como morava longe, não seria problema. Ela não queria que assistíssemos aquele ato. Mas eu tive um daqueles estranhos calafrios que às vezes me dá. Uma vontade repentina de fazer algo, um estalo, uma intuição. Não sei definir. E isso me fez ir na casa de minha mãe. Na casa que meu pai construiu. E assim foi, explicado para mim o que seria feito, eu só pedi aos veterinários que aplicassem a injeção enquanto eu acalmava e acariciava o Negrinho. Assim eu vi o cão de meu pai dar seu último suspiro, fechar seus olhos vagarosamente, para seu último sono. Jurei nunca mais ter cachorro, esta foi a minha reação primeira. Mas nunca mais é tempo demais, e isso é assunto para uma outra história, história esta que ainda está sendo construída.

E meses após, o Cardeal, já bem velho (eu nem imaginava que os pássaros vivessem tanto!) acordou como a muito tempo não se via! Segundo minha mãe e meus irmãos relataram, cantou lindamente! Cantou como a muito não se ouvia. Deu aquele show como antigamente, como nos tempos em que cantava e encantava às cinco horas da manhã, tendo meu pai como sua plateia. Foi magnífico! E de repente parou. Cessou o canto, e a casa ficou silenciosa. Minha mãe levantou e foi até a gaiola do Cardeal, ver o que o havia eriçado, a razão de ter entoado aquele canto tão belo, como a muito não ouvia. E o encontrou, caído no chão de sua gaiola. Aquele foi seu último canto.

A mãe hoje também não se encontra mais entre nós. Em 2016, julho de 2016, ela partiu.
Meu irmão comprou uma casa no bairro Cohab A e se mudou em dezembro do último ano. Meu segundo casamento terminou a pouco mais de três anos, retornei para a casa da família, junto com minha filha (está comigo desde seus dois anos de idade). Minha irmã nunca casou, sempre morou aqui. Volta e meia falamos sobre o destino que vamos dar a esta casa. Penso em comprar uma casa para mim, minha irmã também. Meu irmão já mora em outra casa. Mas por algum motivo, só pensamos, só falamos. Nada de fato fizemos ainda. Há ainda o apego. As memórias são lindas, cada parede erguida é um legado deixado pelos nossos pais, foi a obra da vida deles. E sempre quando falamos sobre nossos melhores momentos, sorrisos e lágrimas ocorrem juntos, pois neles estão o Negrinho correndo e saltando pelo pátio e o magnífico canto do Cardeal!


Sandro Ferreira GomesProfessor de Língua Portuguesa, Conselheiro Municipal de Políticas Culturais em Gravataí/RS, Servidor Público, Porto Alegrense, admirador das belas artes, do texto bem escrito e das variedades de pensamento.

Sandro Gomes














03 ANOS DE COLETIVEARTS
 NÃO ESPALHE FAKE NEWS, ESPALHE CULTURA!

SIGA-NOS EM NOSSAS REDES SOCIAIS:


Sempre algo interessante
para contar!

Postar um comentário

8 Comentários

  1. A amizade entre os animais e seus donos é mais pura das amizades

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Que texto lindo, Sandro!
    "Realizei" as cenas, me emocionei, sorri durante toda a leitura.
    Ternuras moram, geralmente, em lugares sabidos: nas famílias, nas memórias, em casas que ostentam o status de lar.
    Parabéns, meu querido amigo!
    Sua escrita é ímpar.

    ResponderExcluir
  4. Verdade. Nada mais envolvente, mais verdadeiro! A lealdade dos animais é fantástica!

    ResponderExcluir
  5. Que lindo meu querido, parabéns! ❤️👏🏾😥 Emocionada!

    ResponderExcluir
  6. Obrigado, pessoas lindas! Obrigado pelas palavras de carinho!

    ResponderExcluir
  7. Que linda e emocionante é essa história, enchi os olhos. Os animais são sempre grandes amigos

    ResponderExcluir
  8. Verdade! Lembranças lindas que me acompanham!

    ResponderExcluir