TECITURA


 

1984 - George Orwell




Quarta-Feira. Um dia cinzento. Comecei cedo, levando minha filha ao trabalho às 7:20hs. Retornei para casa, tomei café (sou um viciado em café, puro e sem açúcar) pois o expediente na Biblioteca inicia às 9hs. Seria hoje o início da exposição dos livros em Braile, teríamos convidados. Então, verificação de rotina no carro antes de sair de casa, completei a água do radiador - vou ter que ver isto, há algum vazamento, pois preciso completar o líquido duas vezes por semana - verifiquei uma última vez nas redes sociais sociais, havia mensagens do Whats, disparo da Coletive. Coluna Contraponto, da Míriam Coelho já saiu. Outro excelente texto, falando sobre empatia e relações humanas. Comentei! E assim iniciou o dia.

Cheguei às 9hs em ponto. Este dia vai se arrastar, aquele clima úmido, chuva forte,ventando um pouco, mas não estava frio. Moderado apenas. A exposição …cancelada, segundo minhas colegas. Devido ao mau tempo e às chuvas, houve a decisão de adiar a exposição para data a ser definida, provavelmente para a próxima semana. Mas os livros continuam expostos, apenas não será ainda aberta oficialmente.

Hoje terá pouco movimento. Dias assim afastam o público! Segunda semana de meu retorno, o movimento da Biblioteca ainda não está normal, se compararmos ao esmo período em anos passados. É compreensível, visto que ainda estamos sob esta pandemia. Ouvi na rádio Gaúcha hoje, quando estava me deslocando para cá, entrevistas com médicos e especialistas da área. Esta variante Delta preocupa. Estão planejando uma terceira fase de vacinação, a começar pelas pessoas que apresentam quadros mais suscetíveis: idosos acima de 80 anos, profissionais da saúde acima dos 60, doentes crônicos que apresentam quadro de comorbidades e pessoas que utilizam remédios de uso contínuo que baixam a imunidade.

A história se constrói no dia a dia. Como será nossa história futura? Nem em sonhos imaginávamos este quadro atual a dois anos atrás. Mas enfim, somos uma das espécies mais adaptáveis do planeta. Acredito que iremos superar, apesar do alto preço que estamos pagando.

Um usuário. Paulo Roberto Nunes. Um cara interessantíssimo! Excelente conversa, lê muito! Pois este simpático senhor, um usuário frequente, foi o primeiro atendimento do dia. Devolveu Cidadã de Segunda Classe, de Buchi Emecheta, e pegou O que é fascismo? E outros ensaios, de George Orwell. Confesso que este livro devolvido eu não conheço. Não li nada de Buchi Emecheta. Fiquei curioso! Paulo lê muito, e com ótima qualidade de escolhas! Esta escritora Nigeriana deve ser boa!

Paulo Roberto é um daqueles que tem uma história para contar. Amigo de meus amigos, frequentador da biblioteca desde sempre, creio, tem um histórico riquíssimo. Sujeito despojado, encarna perfeitamente aquela ideia do SER X TER. Estudou com conhecidos meus, figura muito querida na comunidade. Conheci quando comecei a trabalhar na Biblioteca Municipal, travava grandes debates com ele e Jairo Bauer, colega que trabalhou um tempo aqui

Pois Paulo vivia de “bicos”, serviços de empreitadas, pequenos afazeres, ajudante de profissionais da construção civil. E lia muito!!! Sempre. Lembro certa feita, precisávamos adquirir um livro de Ernest Hemingway, a pedido dos usuários. Não
lembro qual deles, tratava-se de um livro raro, difícil de encontrar. Até achávamos nos catálogos das livrarias, tanto físicas quanto virtuais, mas ao contatar os vendedores ou tentar efetuar sua compra, sempre indisponível estava. Antes de vir para cá, eu trabalhava no Compras - Licitações e RH da Fundarc. Eu mesmo tentei a compra deste livro, sem sucesso! Ficamos quase um ano tentando a aquisição, e nada. Em meio a comentários, Paulo Roberto disse: eu tenho este livro! E fez a doação. Alguns reparos a fazer, temos uma ótima restauradora chamada Maria da Graça - faz milagres! Um luxo para qualquer Biblioteca. E pronto! Estávamos com nosso acervo mais rico, uma doação importantíssima realizada por este nosso usuário. Que desprendimento, doar uma obra destas! Que exemplo de cidadania!

Pois Paulo sumia no verão! Pegava livros, só renovava, voltava no mês seguinte para devolver e trocar. Todo verão, a mesma coisa! Pois Paulo ia para a praia. Era também vendedor ambulante! Começava o verão, e Paulo ia para a praia, se divertir, passar o período na praia, e vender picolé! Vendia muito! Assim passava os verões. Vendendo picolé na praia, fazendo seus “bicos”, se divertindo e lendo sempre. Um criador de histórias! Quando aparecia aqui, sempre compartilhava conosco suas aventuras. Quantos relatos! Sobre as amizades que fazia, as pessoas que conhecia, as
observações feitas, o volume de vendas. Um belo vendedor de picolé, dono de uma cultura gigantesca.

Iara é minha colega no atendimento. João, um dos seus irmãos, é amigo de infância de Paulo. Estudaram juntos! João é outra pessoa que merece ter sua história contada. Profissional da construção civil, pedreiro, mestre de obras, eletricista, resolveu voltar aos estudos já em idade madura, cursando Engenharia Civil. Tive o prazer de ajudá-lo em seu trabalho de pós- graduação, cuidando da parte notacional em Língua Portuguesa. O TCC era sobre Concreto Armado. Para mim, um desafio, primeira tese que auxiliei fora da área educacional ou cultural. E assim, amigos que eram João e Paulo, conversavam muito. Um dia destes, surgiu um concurso público em Gravataí, uma das vagas na área da educação. Vigia de Escola. E João botou na cabeça de Paulo fazer este concurso. Aqui, aconselhamos ele ao mesmo. Época de verão, e Paulo novamente foi para as praias, vender seus picolés, fazer novas amizades, ler e construir novas aventuras. Neste ano, voltou mais cedo, a tempo de realizar as provas do concurso. João sempre disse: a hora que “ele” fizer um concurso, passa de cara! Conversa sobre qualquer assunto, conhece muita coisa, debate sobre tudo! E assim foi! Paulo fez a sua prova, seu concurso, e hoje é um dos nossos colegas na prefeitura. Atua nas escolas do município. Seu horário de vir aqui fazer suas trocas é sempre logo após a abertura, às 9hs, pois dá tempo de fazer o deslocamento até seu local de trabalho. Que história, não?

Paulo Roberto Nunes foi o primeiro usuário atendido no dia de hoje. Bruna, uma das Bibliotecárias, gosta muito de conversar com ele. Eu também, é uma figura muito agradável, culto, sempre sorridente. Um gigante. Apesar da idade tem uma alma de menino. Paulo e Bruna trocam muitas ideias, impressões sobre livros, resenhas, debates, dicas. Adoro vê-los conversando. Você aprende! São catedráticos! Se Paulo estivesse em qualquer universidade dando aulas de Literatura Brasileira ou Mundial, não faria feio. Estaria em seu lugar!

Bruna sugeriu um livro de George Orwell, este que ele levou. E falou sobre a questão 1984, um clássico imperdível de Orwell. Que surpresa, Paulo Roberto ainda não o havia lido! Falou sobre Revolução dos Bichos e outros, falou de Admirável Mundo Novo e Contraponto, de Aldous Huxley, mas não leu 1984, de Orwell. Foi o momento em que eu entrei na conversa, próximo que estava. E assim, Paulo comprometeu-se a pegar em uma próxima oportunidade este clássico da literatura mundial.

Questão 1984. Como assim?

1984 é um clássico imperdível de George Orwell, um romance distópico publicado em 1949. Se você o ler hoje, vai ter a impressão que foi escrito a pouco tempo, dada a atualidade de suas ideias, seus escritos. Um clássico, um livro atemporal, obrigatório. Minha filha comprou uma edição recentemente, encadernação em capa dura, uma promoção em um dos sites que ela utiliza para suas compras online. Comemoração ao aniversário da publicação. Lindo!

Pois então. Enfrentamos um problema recorrente em todas as bibliotecas. Ao menos, as que conheço têm a mesma reclamação vindas de seus funcionários. Livros que saem em locação, em empréstimo, e não são devolvidos! Fazemos inúmeras campanhas, contatamos os usuários que não devolvem via telefone, e-mail e demais meios disponíveis. Estas campanhas por vezes dão algum resultado, mas ainda constitui-se em um dos principais fatores de extravio de livros. Geralmente, dependemos das doações feitas pela comunidade para repor o acervo ou adquirir títulos novos, não há previsão de verbas específicas para este fim. Volta e meia, algum edital ou liberação de algum fundo por parte da Secretaria. E a Feira do Livro, em que os livreiros oferecem em contrapartida um valor em livros para a Biblioteca. Não são meios frequentes, a Feira como exemplo teremos este ano como o segundo ano sem o evento na cidade, devido à pandemia. Só ano que vem para retomar. Perder um livro é um prejuízo enorme, pois muitas vezes temos dificuldade em repor. E devido a isso, hoje estamos somente com dois exemplares de 1984 no acervo. Um está em empréstimo, dentro dos prazos; o outro, Bruna passou para consulta local. Leitura dele só aqui, pois não podemos arriscar perder este título tão importante. Uma falta de sensibilidade, de empatia e de educação por parte destes maus usuários seria? A preocupação do Serviço Público não é afastar as pessoas, a ideia é sempre recuperar estes usuários para que retornem ao espaço, ao bem comum. Quando ficam em débito, geralmente deixam de frequentar. Motivos variados. Mas a consciência coletiva precisa haver. Quando você se cadastra para utilizar qualquer tipo de serviço público, usufruir de bens e patrimônio, precisa ter
esta consciência. O que está ali pertence ao comum, a todos e todas, à coletividade. Não é propriedade de um apenas. Este patrimônio, exemplo utilizado são os livros das Bibliotecas, catalogados e pertencentes ao acervo, são exemplo disso. Fazem parte da coletividade. Quando você se apropria de algo que não é seu, está tirando a oportunidade de outras pessoas tomarem contato com estas obras, adquirir determinados conhecimentos, enriquecer suas culturas e intertextualidades através das experiências obtidas pelas leituras. Falta muito deste pensamento coletivo. Sem julgar e não querendo criar qualquer tipo de preconceito, será que, como sociedade, não estamos precisando olhar um pouco mais para dentro, procurar autoconhecimento e após expandir este olhar para o externo, o ambiente, o todo? Mais empatia, preocupação com o próximo, um pensar social? Questões, amigos e amigas. Reflexões necessárias!



Sandro Ferreira GomesProfessor de Língua Portuguesa, Conselheiro Municipal de Políticas Culturais em Gravataí/RS, Servidor Público, Porto Alegrense, admirador das belas artes, do texto bem escrito e das variedades de pensamento.


Sandro Gomes














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