CONTRAPONTO

Sofrimento 

Semana passada estivemos em um dos momentos religiosos mais importantes para o nosso país, a páscoa. Porém não vou me aprofundar no seu significado religioso ou em suas histórias bíblicas, pois tenho pouco conhecimento. Meu foco é discorrer sobre algumas reflexões simbólicas que esse período me remete. Portanto, caro leitor, se tem sensibilidades a respeito de sua religião ou é muito ortodoxo em suas crenças, esse texto não é para você.


Para mim, a jornada de Jesus na Terra é simbólica (mas não estou dizendo que acho que ele nunca existiu!), o próprio Joseph Campbell menciona isso em seu livro “O Herói de Mil faces”. Para este pesquisador, assim como para muitos outros historiadores e psicanalistas, nossos grandes heróis míticos têm uma jornada simbólica rumo ao crescimento e a individuação, nos mostrando o caminho possível para o nosso próprio amadurecimento durante séculos.


Jesus é um herói mítico, sem dúvidas, por ser exemplo de gerações e conter muita simbologia. Durante a quaresma, vem forte o clima de morte e de como ele foi morto na cruz. Chegamos ao ponto crucial disso tudo: o seu sacrifício. Particularmente não consigo sentir o amor infinito igual às milhares de pessoas que assistem as representações e imagens da sua crucificação, mas nunca havia me questionado o porquê, até agora.


Estudando um pouco sobre psicanálise e vivenciando diversas experiências de autoconhecimento, eu sei que quando negamos algum aspecto nosso, por julgarmos negativo, ele acaba nos controlando e nos consumindo até que tenhamos a coragem de vê-lo e acolhê-lo como nosso. Acredito que este sacrifício de Cristo é um aspecto coletivo não assumido: a nossa capacidade de causar grande sofrimento aos outros.


Há mais de dois mil anos exaltamos Jesus e ainda continuamos cometendo os mesmos erros, por que será? Nos regozijamos pelo grande amor que este irmão demonstrou por nós, mas esquecemos que também somos aqueles revoltosos, capazes de grande atrocidades, quando damos vazão a nossa ignorância, não acham? Podemos não pregar mais ninguém em cruzes e esperar que elas agonizem até a morte, mas fazemos coisas tão cruéis quanto ou até pior. Bons exemplos disso é a atual guerra da Ucrânia, o que acontece com os “traidores” de gangues e devedores de drogas, o que acontece dentro de presídios e como ignoramos os desmatamentos ou a carnificina feita para termos churrasco no domingo. Ignoramos até a pandemia.


Talvez o fator que mais tem nos engolido enquanto sociedade todos esses 2022 anos é que sempre olhamos apenas para a luz que foi ter Jesus entre nós, colocando-o como um outro deus e nos distanciando ainda mais da possibilidade de amadurecer por sermos meros mortais, talvez nosso aspecto sombrio violento seja muito doloroso de admitirmos, ou talvez tenhamos muito orgulho a ponto de admitir que somos esses cruéis também. Talvez sejam todas essas alternativas anteriores ao mesmo tempo.


O que aprendi nessa minha pequenina jornada (e ainda estou aprendendo) é que se não acolhemos esse aspecto negativo em nós, o enviamos para as sombras e de lá das sombras ele passa a nos controlar cada vez mais, pois ele quer ser visto, ele deve ser reconhecido. Quando passamos a aceitar os nossos monstros, sejam quais forem, trazemos a luz este pensamento: “tudo bem, isso é meu, sou capaz de sentir e cometer essas atitudes, mas posso as reconhecer e agir de forma lúcida, dominando meus impulsos dentro de mim para não descontar mais nos outros.”


Outra coisa que me incomoda no sacrifício de Jesus e que acredito ser uma interpretação equivocada da maioria das pessoas é que o sofrimento nos enaltece. Inclusive já ouvi isso em algum lugar. A vida realmente é difícil, precisamos aprender a lidar com as dificuldades para amadurecer, mas não devemos exagerar colocando silícios em nós mesmos. O trabalho e o esforço nos enaltecem, mas onde está se colhendo sofrimento é um lugar que não deve nos servir.


Grandes exemplos disso são aqueles diversos amores conturbados o qual as pessoas se envolvem, acreditando que o amor é luta, pertence àqueles que aguentam por mais tempo. Como diz aquela psicóloga famosa, Anahy D'amico, no título do seu livro “O amor não dói”. Também temos aqueles pais completamente abnegados, que sofrem nas mãos dos filhos, a fim de que um dia estes rebentos percebam seu amor por eles e se redimam. Fora as pessoas que são formadas na arte de “engolir sapos” e ser tratados como escravos por outras pessoas, como forma de provar seu valor.


Ainda me lembro do último BBB que assisti, há muitos anos atrás. Além de ser uma tortura viver confinado em uma casa (vimos isso na pandemia), havia um integrante extremamente conturbado, que criava inúmeros conflitos, discussões e torturas mentais. Provavelmente para manter o ibope, esse maluco foi longe na competição. No mesmo grupo, havia um rapaz, o favorito da mídia, que desviava ou aguentava no osso todas as loucuras do seu colega lunático. Certo dia, no final da competição, o colega problemático sentou com o seu colega resiliente e o elogiou por nunca ter sucumbido aos seus ataques e ter sido o único a se manter respeitoso com todos. Este rapaz explodiu em lágrimas, diante do elogio, porque ele realmente se sacrificou inúmeras vezes para obter esse reconhecimento. Mas me questiono se essa atitude foi realmente saudável.


Um dos símbolos mais famosos do nosso grande herói, é quando ele entra na cidade de Jerusalém montado em um jumento, simbolizando que o homem é quem deve controlar a sua mente e não a mente controlar o homem. Particularmente não consigo assistir nenhum filme sobre a crucificação de Cristo, porque não sinto um pingo de admiração por tudo que ele sofreu, sinto tristeza por ver que essas crucificações ainda existem mas com outra roupagem! Sinto-me mais triste ainda porque nossa cultura certamente exalta muito àqueles que sobrevivem à essas crucificações. É quase um mérito olímpico! Temos milhares de ressuscitados à nossa volta, alguns em consultórios terapêuticos, outros tomando pílulas controladas e outros sendo algozes de novos andarilhos, mas todos ressuscitados de alguma crucificação.



Miriam Coelho

Miriam Coelho é artista das imagens e das palavras.

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12 Comentários

  1. Perfeito! Nunca gostei desse aspecto do cristianismo de achar que "sofrer é bonito". A dor fará, sim, parte da vida. Mas essa maneira distorcida da religião encará-la não é nada construtiva.

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    1. Provavelmente a religião criou essa distorção sobre o sofrimento para controlar os fiéis pobres, levando eles a crer que a escravidão que sofriam de seus patrões era bem vista por Deus. Se rebelar era o mesmo que se rebelar contra Deus. Hoje em dia, a crença está tão entranhada que representamos ela em tudo.

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  2. Parabenizo-te pela perspicácia.

    Os poderosos antigos eram desprovidos de tecnologia, mas burros não eram. Souberam controlar e manipular direitinho as massas. (G. G. Carsan)

    Criamos os mitos e jogamos para eles as nossas responsabilidades, medos, anseios, devaneios e tudo mais. (G. G. Carsan)

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    1. Gratidão! Amei as citações. Tem tudo a ver com o assunto. As citações são sempre uma forma de reforçar nossas ideias.

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  3. Análise perfeita de um período que não acabou, só ganhou em evolução industrial e científica, mas continua sim repetindo atrocidades e criando outras formas de eliminar e explorar os tais irmãos menos desprovidos principalmente da tábua de salvação que é o dinheiro.
    Parabéns!

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    1. Concordo com o que tu disse. O sofrimento é uma ótima forma de controle (da maioria...). Ainda bem que temos raridades! Gratidãooooo

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  4. Mirian, parabéns pela coragem. Análise perfeita. Ainda crucificados e somos crucificados todos os dias.

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    1. Gratidão! Assuntos sobre religião são sempre delicados. Fico feliz que não tenha abordado de forma ofensiva, má reflexiva.

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  5. Como sempre trás reflexões sobre a sociedade atual e reflexões muito boas.

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