MICROSCOPIA DO OLHAR

 

SOBRE CATIVAR

Não sei se os leitores e leitoras sabem, mas eu sou professora. De Artes. Minha formação é em Teatro, e eu sempre digo que foi o Teatro que me salvou e que a Educação me direcionou. Pois bem, eu briguei durante alguns anos com a minha profissão, por conta de crenças limitantes e outras tantas vezes por aquilo que a sociedade dita e entende sobre o papel do educador na escola.

Vivemos fortemente por quase dois anos uma pandemia que nos obrigou ao isolamento. A falta de contato com os estudantes desorientou o nosso trabalho. Quem somos ou para quê servimos, enquanto educadores? Incertezas e angústias também nos assolaram, além do montante de atividades que nos foi atribuído no “home office” (o nome bonito estrangeiro para exploração).

Depois do fechamento compulsório das instituições escolares, voltamos ao “chão de escola”. (Re)Encontros saudosos, chorosos. Sorrisos disfarçados pelas máscaras ainda necessárias. Histórias tristes e outras incríveis. Mudanças irreversíveis na vida de muitos. Gente de escola como estudantes, professores e funcionários estão ali, para um novo capítulo nos escritos da vida.

Assumo turmas de sexto ano do Ensino Fundamental. Crianças que estiveram pela última vez no prédio escolar no terceiro ano do Ensino Fundamental. Muita coisa para retomar e construir. Confesso que estava receosa com esse desafio. Tenho reformulado meus métodos trazendo mais fortemente a dimensão sensível e expressiva, tão necessária para colocarmos em suspenso a dor das transformações forçadas e entender o mundo em que hoje transitamos. Se para nós, adultos, é difícil, imagine para as crianças. Nós somos responsáveis. Nós somos, e não podemos lavar as nossas mãos. O educador que ainda não entendeu isso, está no lugar errado.

Fiz um acordo comigo mesma esse ano. Tem que ser prazeroso estar na escola, para mim e para os estudantes. Senão, não vale a pena. Não faz sentido. E isso precisamos ressignificar urgentemente. Levei para os estudantes uma passagem do livro O Pequeno Príncipe, que trata sobre o encontro dele com a raposa, ensinando o sentido de cativar.

Muitos acham o livro “piegas”. Esses são aqueles que enxergam o chapéu. Para esses, as minhas palavras não ressoam. Os deixo de lado. Me interessam aqueles que enxergam o elefante dentro da cobra. Com esses vale a pena sonhar junto. Li o texto para as quatro turmas que tenho de sexto ano, e em todas as leituras eu me emocionei. Tive que respirar, disfarçar e seguir (nisso o Teatro me ajudou). Conversar sobre o significado de cativar. Estabelecer laços. O essencial é invisível aos olhos. Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas. E é sobre amor que precisamos falar. Amor e responsabilidade. Amor e respeito. Amor e cuidado. Amor. (os do chapéu caiam fora!)

Em casa busquei refletir sobre o motivo de tal emoção. O que mexeu tanto comigo? E daí eu lembrei dos olhares dos estudantes para mim. Um olhar carente, doído, sofrido, com necessidade de amor. Quem cativa é responsável. Deixa marcas. Para o bem e para o mal. Estamos aos poucos tomando ciência do mundo que sobrou. Das feridas causadas nas almas. Das feridas físicas das guerras contemporâneas. De quem ainda quer continuar vivendo como se nada tivesse acontecido. De quem não mudou.

Cativar é sobre isso. Colocar-se na frente do espelho da existência. E agir.



Patrícia Maciel

Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS; Gestão Cultural pelo SENAC-RS; Língua, Literatura e Ensino pela FURG, e Arteterapia pela Famaqui/RS (em andamento); graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em pedagogia da Arte, processos criativos e escrita criativa. Membro fundadora do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.

Patrícia também apresenta o podcast Coletive Som, a voz da arte. Para escutar episódios do Coletive Som, clique aqui.


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10 Comentários

  1. Revisitar o "pequeno príncipe" é obrigatório, para todos nós, adolescentes, adultos ou crianças, "leitura anual obrigatória", justamente para não perdermos a visão do "elefante".
    Bem colocado Patrícia, e falando nisso, deixa eu pegar meu exemplar aqui...

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    1. Querido Ge! É assim mesmo! É muito fácil para nós, adultos, esquecermos do elefante, por isso manter a nossa criança interior viva é um compromisso com a nossa porção adulta. Um abraço!

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  2. Muito bom, Patrícia. Essa emoção é própria de quem tem sensibilidade e alma de artista. Entendo bem isso, pois durante 12 anos dei aulas de teatro para crianças, em sua maioria de sextas séries. Mas como já deixei de fazer isso há muito tempo, não passei por essa experiência pós-pandemia que é difícil e complexa para todos. Siga em frente com o Saint-Exupéry porque ele escreveu um clássico! Parabéns também pelo aniversário. Felicidades e Luz!

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    1. Sim, João, eles sempre têm muito a nos ensinar. Obrigada pelo comentário, abraço!

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  3. Patrícia, antes de mais nada: feliz aniversário, muita luz. Quando li o título logo veio a lembrança do Pequeno Príncipe e o meu coração aqueceu lembrando da história. Teu texto fez meu coração quentinho de amor e de lembranças da sala de aula. Alunos não precisam apenas de conteúdo, isso qualquer computador pode transmitir. Aluno precisa de amor e carinho para aprender sobre o mundo. "O essencial é invisível aos olhos." Parabéns, prô, por ser essa professora que percebe e transmite o que percebe.

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    1. Querida Isab! De fato, corremos desenfreadamente nesse mundo maluco, esquecendo que o que de fato importa está ao alcance do nosso coração. Obrigada pelas felicitações e pelo comentário! Bjo!

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  4. Sim Patrícia! Comungo com vc! Espero q não somente nos, prôs de Arte sintamos isso, a necessidade e a responsabilidade de "cativar" através do q ensinamos. Parabéns!

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    1. Sim, Sandra! Não é só responsabilidade nossa, mas de todos os adultos que esqueceram de cultivar a alegria e a imaginação da sua criança interior. Obrigada pelo comentário! Abraço!

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  5. É tão importante o professor incentivar a leitura na sala de aula, e O Pequeno Príncipe é uma leitura tão linda e tão inspiradora.

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    1. Sem dúvida, Laís! Ele tem uma sensibilidade tão grande que a cada vez que a gente o lê novamente, descobre mais um pedacinho de amor. Grata pelo comentário! Bjo!

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