
Revelação
A luz é minha lavoura. Na paisagem busco atento onde colher seus frutos. Esse branco da caatinga, por exemplo, é desafio: saber atocaiar formas, ver por entre sombras raras. Ali todo ser pratica arte de se guardar, posa fugaz para o retratista – às vezes nem dá tempo de sentir o quanto se está vivo. Tem que conquistar, a cada vez, direito de passar entre as coisas se fundindo ao sol, tudo nascendo e morrendo ao mesmo tempo. Fotografar já em moldura, que nem esse caboré pousado na pedra, imperioso. Agora já foi. Ver é sempre cuidar de rever.
Minha cidade ficava no meio de caldeirão de pedra e terra seca do sertão. A vida parecia esquecida de si mesma, era um não acontecer de sobrarem horas demais, até que os dias resolvessem passar. Restavam as lembranças todas de uma mesma cor, a gente vivendo nas fendas do tempo. Amuava até mesmo vontade de fazer qualquer coisa, de entender o que a gente sentia ou pensava. Na época de criança eu achava que só acontecia alguma coisa quando vinha gente de fora, trazida no trem que apitava na distância da curva, feito miragem com hora certa. Aí o tempo corria.
Diversão era assistir o trem tremendo, trotando no ar quente, monstro de ferro crescendo à vista. Assobiava forte, sacudindo o chão, despertando reencontro. Então parava bufando, cansado. Dali a pouco saíam pessoas, remoendo cada qual a própria história, aprendendo novo rumo. Engraçado ver a marca de cada um, os diferentes compassos de andança na estação. Uns mais decididos, de pronto se apressando para ir embora; outros, na demora de procurar, o olhar enjoado de tanta mistura vista na paisagem. Eu tinha os olhos cegos de ver, não sabia das sutilezas da luz e da minha própria vontade, nem dos truques da ciência, essa mesma que fabricava o trem.
Um dia chegou um senhor de casaca preta, suor brilhando no rosto vermelho, cozido pelo bafo do meio-dia. Desceu as escadas do vagão como se tivesse sido despejado na praia com os restos de um naufrágio. Soube depois: era francês, viajante de profissão. Chamava-se Gilles. Trazia arca, tripé esquisito de ferro, de cortinado e janelinha de vidro, no nariz óculos de uma perna só. Embaixo desse equipamento todo ele se sumia para tomar as providências de encomendar as imagens. Eu não sabia que era assim que eram feitas as fotografias.
Nas semanas seguintes, espalhando simpatia, seu Gilles foi quebrando a desconfiança xucra dos locais, fazendo amizade. Para onde ia, era cercado de grupo de curiosos, feito profeta de uma nova era. As pessoas se chegavam para ver a máquina misteriosa, espiar o jeito do forasteiro conversador e sem bondade. Diziam até que ele prendia a alma do fotografado, levava para longe, e que essa língua enrolada dele era para disfarçar as capetezas. Eu tive medo, mas a curiosidade foi maior. Queria saber de onde vinha esse poder de imobilizar as pessoas com jeito sério-triste no papel, olhar parado sem piscar, mirando fora do tempo. Estudava longamente as fotos, contemplava aquelas crianças vestidas de anjo, que não envelheciam; os velhos bem velhos escapando da morte, os defuntos retratados no caixão, olhos entreabertos, numa despedida eterna.
Virei carregador do equipamento do seu Gilles, fazia olhar estudado e sério para impressionar o público, ajudava a montar cenário desenhado com palmeiras e uma praia impossível de tão arrumadinha, descombinando um estandarte vermelho com tapete ilustre, já muito sofrido. Até ganhei um boné de presente, sinal de autoridade. Pouco a pouco fui sendo admitido nos segredos da arte: o quarto escuro improvisado com tramela e panos escuros de vedação; os líquidos de cores e cheiros estranhos; a mágica da imagem brotando no papel; nosso silêncio fazendo as vezes de reza. Mergulhava no fascínio de ver a luz ressurgindo, desenhando corpos, roupas, objetos aparecendo em contornos, disputando lugar no mundo.
Nem sempre era o esperado, porém: a arte de seu Gilles era caprichosa. Havia truques a serem aprendidos , ângulos matreiros, era preciso respeitar as hierarquias entre os planos de vista. Ser ousado de perceber a mobilidade das coisas, decifrar o foco, driblar os caprichos da luz. Aprendi a ver pelas lentes da máquina: ela também me transformava aos poucos, não estava de todo errado aquele medo antigo de ser levado pelo desconhecido. E também o sonho de fazer a foto perfeita, receita de luz e sombra; vontade era dominar o movimento no instante exato em que a emoção se trai e o pensamento transluz no olhar.
Fundi-me com o objeto da minha paixão: virei fotógrafo. Saí pelo mundo buscando a precisão no gesto, sincronia entre mão e retina. Passei por todo tipo de paisagem, aprendi a ler o alfabeto das nuvens e dos areais, adivinhei intenções nos gestos dos fotografados, pacientei horas imensas de abrir flores. Mas faltava encontrar o limite poético absoluto, aquela quase dor física de não poder captar maior beleza, fazendo gritar o silêncio da palavra não dita, pela força da imagem. Nenhum mistério me dizia mais que esse, foram muitas melancolias desperdiçadas sem razão, até chegar naquela vilazinha de pescadores do litoral.
Era dia de festa pela chegada de um enorme peixe na praia, a carcaça imensa me lembrando a locomotiva da infância. Só de pensar nisso meu coração se agitou, em estado de prontidão. Na largueza da beira-mar em fim de tarde, os caminhos se encontravam em cenário de coqueiros e dunas formando estúdio bordado, sem necessidade de retoque nem tela de artifício. Foi então que ela apareceu, de sombrinha clara, o vestido de bolinhas pretas salpicando o movimento do corpo, na suave dança de se desprender do chão. A arte quis imitir a vida: por instinto, lancei mão da máquina fotográfica, mas um sentimento maior me paralisou, em súbito aviso. Resolvi habitar todo aquele momento.
Vi o sorriso dela iluminando o mundo, lá em cima o céu aberto em cores, pura criação. Na praia sumiu o peixe-gigante, a gente da vila, murmurinho engolido pelo mar: só existia ela, no centro de tudo. Minha vontade foi se tornando pensamento, renegou sombras, uma certeza tomou conta de mim. Queria libertar meu olhar sem nenhuma defesa, ser companhia do olhar dela, virar capricho de luz. Senti meu coração vindo alegre, apitando na curva: cravei no instante a moldura de toda uma vida por viver.
| Paulo Malburk |
PROPÓSITO DE NÃO SER
A CULTURA E A ARTE!

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