O DIA EM QUE LANTERNA VERDE CONHECEU A POBREZA E A DESIGUALDADE SOCIAL
Nos meus mais de vinte anos como professor, venho percebendo que uma das questões que mais têm desafiado os educadores nos processos de ensino/aprendizagem é a dificuldade de despertar o interesse dos alunos pelas suas aulas. Muitos são os debates acerca de como desenvolver aulas que sejam interessantes tanto para o professor quanto para o aluno. As dificuldades vão desde o recorte a ser feito, com a escolha dos conceitos, temas e teorias até o tipo de instrumento a ser utilizado pelo professor.
Como leitor e colecionador de gibis, desde minha alfabetização, percebi que o uso das histórias em quadrinhos como instrumentos pedagógicos pode vir a ser uma boa alternativa de aproximação dos jovens, não só com a prática da leitura – o que já é um ganho, mas também com as diversas áreas do conhecimento. Durante muito tempo as histórias em quadrinhos foram olhadas com certa desconfiança quanto aos efeitos que elas poderiam provocar em seus leitores. Por representarem um meio de comunicação de vasto consumo e com conteúdo, até os dias de hoje, majoritariamente direcionado a crianças e jovens, as histórias em quadrinhos cedo se transformaram em objeto de restrição, condenadas por muitos pais e professores do mundo inteiro. Entretanto, percebeu-se nas últimas décadas que as histórias em quadrinhos podiam ser utilizadas de forma eficiente para a transmissão de conhecimentos específicos, ou seja, desempenhando uma função utilitária e não apenas de entretenimento. Felizmente, as últimas décadas do século passado presenciaram, cada vez mais, a utilização das histórias em quadrinhos pelos professores das diversas disciplinas que nelas buscam não apenas elementos para tornar suas aulas mais agradáveis, mas também, conteúdos que pudessem utilizar para transmissão e discussão de temas específicos nas salas de aula.
Venho percebendo ao longo de minha trajetória como educador, o gosto dos jovens estudantes, especialmente pelos quadrinhos de super-heróis. Os super-heróis como um dos gêneros das histórias em quadrinhos surgiram no final da década de 1930. Na chamada “Era de Ouro”, muitos deles ganharam as páginas dos “comic books” - revistas em quadrinhos norte-americanas - e logo se tornaram um fenômeno da cultura de massa. Foi nessa época que apareceram os grandes ícones como Superman, Batman, Capitão América, Flash, Lanterna Verde, Arqueiro Verde e muitos outros, que inundavam as bancas de revistas e conquistaram um grande público durante a Segunda Guerra Mundial. Com o término do conflito armado, aos poucos os super-heróis foram perdendo seu prestígio e popularidade. A grande retomada do gênero se deu no início dos anos de 1960, com a criação de duas equipes de super-heróis: a Liga da Justiça, da editora DC Comics, e do Quarteto Fantástico, da editora Marvel. E com o tempo, os super-heróis foram alcançando outras mídias. O cinema como um produto de consumo de massa viu nos superheróis uma boa oportunidade de expandir sua indústria. A partir da década de 1940, com os seriados do Capitão Marvel e do Fantasma, os super-heróis ganhavam a tela grande. Mas podemos dizer que o grande boom do cinema de super-heróis se deu mais recentemente, a partir do ano de 2000, com o filme dos X-Men. Logo em seguida vieram os longas-metragens do Homem-Aranha, Batman, Superman, Homem de Ferro, Thor, Vingadores e outros de grande sucesso nas bilheterias. Esse estardalhaço do cinema de super-heróis não passou despercebido pelos nossos alunos. Tenho observado a todo o momento os jovens discutindo esse fenômeno da cultura pop, inclusive comprando os gibis, por se identificarem com muitos dos personagens dessas histórias. A popularidade dos super-heróis no cinema e em outras mídias nos últimos tempos pode contribuir para que se faça uso das histórias em quadrinhos como instrumento didático – pedagógico e tornar as aulas mais interessantes para nós professores e para os estudantes.
Quando tratava do tema da “desigualdade social”, nas aulas de Sociologia, não pude deixar de lembrar daquele magnífico arco de histórias em quadrinhos publicadas nos números 76 a 87 da revista “Lanterna Verde e Arqueiro Verde” entre os anos de 1970 e 1971, com roteiros de Dennis O‟Neil e desenhos de Neal Adams. Essa é uma das séries mais elogiadas das histórias em quadrinhos de super-heróis, onde pela primeira vez o gênero encarava problemas políticos e sociais da sociedade contemporânea. Enquanto o super-herói Lanterna Verde apresentava o norte-americano médio conservador, o Arqueiro Verde era o homem com uma visão mais de esquerda e contestadora da sociedade vigente. Oliver Queen (identidade secreta do Arqueiro Verde) questiona o papel de Hal Jordan (identidade secreta do Lanterna Verde) como super-herói, e os dois personagens acabam realizando uma viagem pelos Estados Unidos, logo em seguida ganhando a companhia da heroína Canário Negro, namorada do Arqueiro Verde. Em cada cidade que o trio de heróis parava, encontrava um problema social diferente, justamente assuntos que ocupavam a mídia norte-americana do início dos anos de 1970. Essa série de histórias, por tratar de questões pertinentes à área das Ciências Sociais tais como pobreza, desemprego, falta de habitação, aumento demográfico, exploração capitalista, racismo, drogadição, fome, direitos da mulher, manipulação religiosa, indígenas, direitos civis, trabalho e alienação, todos assuntos polêmicos da época, se constitue numa alternativa viável para discutir o tema da desigualdade social e suas consequências como a pobreza e a exclusão.
Podemos perceber o problema da desigualdade social logo no primeiro conto do arco de histórias “O mal sucumbirá ante minha presença” (Lanterna Verde e Arqueiro Verde, nº 76, 1970), em que o herói Hal Jordan – identidade secreta do Lanterna Verde - ajuda um imobiliário (Jubal Slade) expulsar supostos arruaceiros de seu prédio, quando na verdade este homem os está mantendo num lugar imundo e asqueroso, sem nenhum saneamento, e ainda quer derrubar o prédio para fazer um estacionamento, despejando assim todos os moradores e aumentando o censo dos sem-teto e desempregados. Nesta história, temos a chance de ver gente desmoralizada por ter tido as oportunidades arrancadas de si, sendo obrigados a viver como indigente e escória, jogada ao relento e recebendo cuidados miseráveis de homens como Slade. Isto ainda é uma realidade hoje, não apenas nas grandes e pequenas cidades de nosso país como também nos Estados Unidos que, mesmo sendo a maior potência econômica do mundo, tem problemas sociais ainda tão sérios quanto os nossos, o que não é de hoje, como podemos ver nas histórias. Dennis O‟Neil e Neal Adams quiseram tirar os leitores de seus casulos mostrando a verdade do mundo real dentro do mundo fictício. Por tudo isso, e muito mais, os considero dois dos maiores ícones das histórias em quadrinhos. Independentes de ser de super-heróis ou não. Obrigada Dennis e Neal, de certa forma, vocês são minhas referências até hoje
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Nel Adams com Paulo Kobielski, momento inesquecível.
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Paulo Kobielski está novamente concorrendo ao troféu Angelo Agostini como melhor fanzine, pelo MUNDO GIBI N°05:
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Paulo Kobielski é professor de História com especialização em Filosofia e Sociologia pela UFRGS. Trabalha com fanzines e quadrinhos na educação. Paulo escreve a coluna Dossiê Kobielski, para ler, clique Aqui. Paulo conquistou o Troféu Ângelo Agostini de melhor fanzine no ano de 2020, confira matéria Aqui. Paulo é um dos apresentadores do podcast cultural Coletive Som, A voz da Arte. Para escutar os episódios clique Aqui. Também confiram o episódio n# 02, apresentado por Patrícia Maciel e Luciano Xaba, entrevistando o Paulo Kobielski, clicando Aqui.
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3 Comentários
Essa série de hqs é muito boa, trás tantas reflexões sobre a necessidade da população, o que são heróis de verdade, o lado que se deve lutar, o quanto a população mais pobre sofre e por muitas vezes é desasssistida, o quanto essa desigualdade trás problemas a todos e não só a eles, o quanto as drogas são usadas como um meio de fuga ao sofrimento, o que muitas vezes é esquecido que se precisa de ajuda psicológica acima de tudo (a Canário trás essa parte de acolher os problemas, ouvir, acho que faltou falar dela nessa postagem).
ResponderExcluirAcho que trouxe um recorte importante do mundo das HQs.
Já votei no Ângelo Agostini, votei no teu zine e outras hqs e webtiras que acompanho
Muito bom, Paulo. Essa dupla O'Neill e Adams está entre as maiores do todos os tempos da histórias do quadrinhos. Já votei no Mundo Gibi. Ficamos na torcida. Abraço
ResponderExcluirA capa com o Roy Harper se drogando é marcante é já tinha visto numa reportagem da Wizard Brasil 08
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