CONTRAPONTO

 

Honrando o dia dos pais

Essa semana passada foi de comemoração de um dos dias mais difíceis para mim, o dia  dos pais. Fui criada pela minha mãe, minha avó e tios maternos e sempre ouvi histórias sobre minha geração, nascimento e o pai. Atualmente, depois de muito investigar, ouvir outras pessoas e separar o que pode ser realidade do que pode ser “ponto de vista”, só sei que minha mãe tinha um envolvimento indefinido com meu pai e desse envolvimento complicado, eu fui gerada. Meu pai era muito novo quando eu nasci, foi difícil para ele aceitar uma criança não planejada e de uma mulher a qual ele não gostava tanto a ponto de manter algum tipo de relacionamento.

Porém, antes de chegar a essa simples conclusão, eu fui criada dentro de rancores, crenças sociais e julgamentos. Todos sempre me contaram histórias e opiniões ruins relativas ao meu pai. Inicialmente, na minha cabeça, eu criei um super homem incrível, que surgiria do nada e me salvaria daquele drama todo, provando que nada daquilo que diziam era real. Essa foi minha forma de autoproteção, porém quando finalmente o conheci, meu mundo de faz-de-conta desmoronou. Ele não era nada do que idealizei. Pelo contrário, reconheci características fortes de mim mesma nele, mesmo jeito de falar, gestos parecidos, traços físicos os quais vejo até hoje no espelho e é provável que temos alguns pensamentos sobre a vida bem semelhantes. Eu o rejeitei imediatamente, aquele não era o pai que eu esperava, e passei a julgá-lo e afastá-lo também - eu tinha aproximadamente 9 anos. Foi assim que eu cresci, rejeitando e me sentindo abandonada por uma parte de mim, uma parte muito importante. Esse cenário sempre me pareceu muito confuso, até alguns dias atrás.

Nesse final de semana, participei de mais uma vivência em grupo de Constelação Familiar e o tema era “o pai”. Na prática, foram mostrados dois tipos de pai, aquele que zela pelo seu filho o dobro, porque percebe o abandono emocional da mãe pela criança, e aquele que não pode se aproximar do próprio filho, devido aos muros criados com julgamentos, falatórios e crenças irreais. Uma das terapeutas, por fim, falou algo que me marcou, doeu e gravou fundo, porém foi esclarecedor: “falar mal de um pai para um filho é o mesmo que dizer que algo está errado com esse filho. Porque um filho não consegue odiar seus pais.” Para um filho, os pais são seus criadores nesse mundo, se esse filho for forçado a ver um de seus pais como algo ruim, ele passará a atribuir esses desvalores a si mesmo. Nada mais natural, certo? Se minha “fábrica” tem defeitos, consequentemente eu sou defeituoso! Somos 50% de cada pai. Consequentemente, cinquenta por cento de nós está sendo desvalorizado. Pior ainda quando ambos os pais fazem a mesma ação em cima desse mesmo filho.

Quando eu comecei a ouvir coisas ruins sobre o meu pai, invés de odiá-lo, passei a internalizar que eu fui criada (gerada) de forma errada, que eu sou fruto de um problema e que minha vinda causou dor, invés de alegria. Primeiramente, tentei bloquear essa crença com aquilo que faço de melhor - sonhar, imaginar, fantasiar -, criei um pai de mentira, que não condizia com os relatos dos outros, portanto não era igual a mim. Porém a bolha foi estourada no instante em que encontrei meu pai verdadeiro e me vi refletida nele. Como um encanto se quebrando, caí diretamente no pesadelo da realidade e quis fugir, rejeitar e me rebelar contra essa parte de mim, na esperança de provar aos outros que eu não era má
como um dos meus criadores.

Sempre que o dia dos pais se aproximava, eu sentia como se o dia da “grande lacuna” se aproximasse. Não sei na pele qual a função de um pai, para que serve, tão pouco o que a gente sente na presença dele e isso está claramente representado na forma como vejo todas as características que herdei dele. Não cabia a ninguém da minha criação julgá-lo diante de mim, porque minhas perguntas nunca foram “ele é mau?”, “como é seu caráter?”, “o que ele fez de ruim?”, minhas perguntas sempre foram “quem ele é?”, “por que não posso vê-lo?” ou "por que não posso amá-lo?", era tudo que me importava. Os julgamentos só me obrigavam a pensar mal de mim mesma e ser má com ele, para não desagradar mais
ninguém.

Acredito que se a maioria das pessoas tivesse consciência do quão ruim é denegrir um pai ou uma mãe ao seu filho, não cometeriam essas alienações que vemos o tempo todo. Particularmente, penso que nenhuma mãe e nenhum pai quer realmente destruir seus filhos criando monstros nas imagens dos ex parceiros. A maioria faz isso por diversos motivos relacionados ao medo, ao orgulho, ao egoísmo e à ignorância - sentimentos humanos e aceitáveis ao nosso atual nível de evolução social. Portanto deixo claro que não julgo ninguém do meu passado e não acho certo julgar quem faça isso nos dias de hoje. Podemos nos sentir mal com isso, sentir raiva, dor, ira. Tá tudo certo. Sentimentos negativos são parte de nós e devem ser respeitados. Entretanto somos todos imperfeitos em igual.

O importante é salientar sempre que o relacionamento do casal não diz respeito aos filhos. Bert Hellinger, terapeuta e grande teórico sobre a Constelação Familiar, afirma que “um filho nunca deve conhecer detalhes que pertencem ao relacionamento de casal dos pais”. Percebo que muitas pessoas gostam de misturar, na velha ideia de que filhos são frutos dessa união, portanto estão intimamente ligados a ela. Errado!

Filhos são frutos de duas pessoas, separadas por suas peculiaridades e origens, não de um vínculo, afinal, existem ex namorados e ex casamentos, mas jamais ex filhos. Muitos psicólogos, inclusive, recomendam aos pais que não durmam com seus filhos, que as crianças devem ter seus próprios espaços desde os primeiros anos de vida, que não levem filhos para cama depois da briga de casal ou como elemento que vai impedir o casal de dormir junto após uma briga. Percebem o tamanho do problema sendo criado, nestes casos? Esses psicólogos não estão cortando o “barato” dos pais. Estão mostrando, de forma clara, que o relacionamento não deve interferir na vida das crianças bem como as  crianças não devem interferir nesses relacionamentos de adultos.

Mas e agora? O que fazer diante de todos esses cacos estilhaçados dentro de nós, filhos que crescemos acreditando ter defeito genético? O que esses pais, afastados de suas proles por injustas condenações também podem fazer? Uma das coisas que mais traz dor e revolta é o sentimento de injustiça, a certeza de que o tempo perdido jamais poderá ser recuperado. É como uma prisão, da qual não temos a chave. Ou parece que não temos. Com base no meu nível de esclarecimento atual (que pode e irá mudar com o tempo), acredito que o entendimento e a ressignificação do que aconteceu é sempre o melhor caminho. Não existem vítimas e algozes. Existe a ignorância e os atingidos por essa ignorância, que certamente são ignorantes em outras tantas áreas da vida também. Mudar a forma como vemos esse passado não é o caminho mais fácil e dá um cansaço danado (talvez até revolta) só de pensar no trabalho mental que é modificar uma dor alojada, que virou rotina dentro de nós e foi causada por atitudes de terceiros e quartos indivíduos. A dor,  estranhamente, parece mais agradável, porque nos mantém confortavelmente parados,  esperando que a mudança (que nunca virá!) aconteça lá fora, em quem foi ignorante primeiro. Mas acho que ninguém tem de ser o que queremos, tão pouco ser punido pela própria ignorância. Se for assim, também temos contas para acertar e nem sabemos o
tamanho real da lista, né?

Ainda nesta segunda-feira, na escola em que trabalho, uma avó pediu para a neta (que nem é minha aluna!) me contar o que fez com o cartão de dia dos pais, feito na sala de aula. Ainda não sei porque essa avó puxou tal assunto logo comigo, mas a menina de 5 anos   disse, forçando uma expressão de braveza, que o rasgou o tal cartão, “rasguei em pedacinhos e joguei fora!”, enquanto a avó a olhava com orgulho. Eu ia comentar algo, já sabia da relação dramática entre os pais da menina, mas não sabia nem por onde começar quando fui interrompida por outra pessoa e outro assunto, logo as duas foram embora. A cena martelou dentro de mim por muito tempo. Sinto a dor dessa criança, porque muitas  vezes fiz o mesmo. É de suma importância entender que um pai ou uma mãe tem todo direito de não querer cuidar desse filho ou fazer parte da vida dele. Ambos são humanos. A maternidade e a paternidade não é para qualquer um e as reproduções humanas ainda não são feitas de forma consciente no nosso planeta. Se todos soubessem, de forma clara, das suas responsabilidades e da seriedade que é criar outra vida, a taxa de natalidade cairia para menos da metade só no Brasil. Todavia isso não justifica manchar a imagem de quem gerou a criança, com a finalidade de explicar ausências.

Existem formas melhores, menos prejudiciais e mais certas de esclarecer faltas. Está na hora de revermos atitudes e de transformarmos essas comemorações em um período de acolhimento a todos, dentro suas peculiaridades. Temos de parar com essa divisão absurda de quem tem foto com os pais para postar no facebook e quem tem apenas lágrimas desentendidas para derramar no escuro do quarto. Mais importante que os atos de um pai ou de uma mãe é honrar o recebimento da vida e ver as qualidades que recebemos como dons ou características a melhorar. Mais importante que encontrarmos culpados e apontar dedos, é resignificarmos as nossas dores e soltar as cordas que nos prendem a dor - a liberdade.


Miriam Coelho

Miriam Coelho é artista das imagens e das palavras.


04 ANOS DE COLETIVEARTS,
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