MINHA VIDA NUNCA MAIS FOI A MESMA DEPOIS DAQUELAS
“REVISTINHAS DE SACANAGEM”
Não sei por qual razão, mas uma das coisas que acho muito bacana na relação entre pai e filho é a ida à barbearia para cortar o cabelo. Lembro dessas idas, normalmente aos sábados pela manhã, e até o nome de um dos barbeiros lá da minha infância: o “seu João Barbeiro”. Um dos motivos que me faziam gostar de ir à barbearia dele era a enorme pilha de gibis que lá tinha para lermos. Como só ele cortava o cabelo e a demanda de clientes era muito grande, tinha tempo de sobra para ler uma história do Tarzan, do Zorro, do Fantasma, entre outras. Nem via o tempo passar.
Já um pouco mais crescido, meu pai deixou de me acompanhar à barbearia. E foi num daqueles sábados, pela manhã, procurando um gibi ainda não lido, que me deparei, ali camuflada, dentro de um Almanaque Reis do Faroeste, com uma pequena revistinha, formato bem menor que as demais. Eram histórias em quadrinhos de “sacanagem”, como se dizia na época. Nunca tinha visto algo igual. Sei que queria ver todo seu conteúdo, recheado de cenas picantes de sexo explícito. Meio constrangido, tive a preocupação de esconder a tal publicação para que os outros clientes não vissem o teor daquelas páginas.
Com o tempo, descobri como adquirir as “revistinhas de sacanagem”. Elas eram vendidas, de forma clandestina, nas bancas da minha cidade, dentro de outras revistas e com muito cuidado, porque podia dar cana, pois vivíamos no Brasil dos anos de 1970, em uma ditadura militar. Era uma verdadeira aventura conseguir um exemplar, pelo fato de a maioria dos guris serem menores de dezoito anos. Foi onde começaram as trocas de uns com os outros. Era o tipo de publicação para se ler com somente uma das mãos. Precisa explicar?
Na época, não tinha a mínima ideia de quem escrevia, desenhava ou publicava as tais “revistinhas de sacanagem”. Os “catecismos”, como passaram a ser chamadas as revistinhas, surgiram nos anos 1950, e eram assinados por Carlos Zéfiro, um pacato funcionário do serviço de imigração do Ministério do Trabalho, cujo nome verdadeiro, Alcides de Aguiar Caminha, era guardado em segredo. Desde sua produção até a distribuição, havia todo um cuidado para que os catecismos não caíssem em mãos erradas. Certa vez um general de Brasília se indignou com as revistinhas e mandou investigar. Chegou até Hélio Brandão, o responsável pela edição das revistas. Hélio jamais revelou a identidade de Carlos Zéfiro.
Zéfiro reinou como o rei da sacanagem nas décadas de 1960 e 1970, em plena ditadura militar. Embora seu desenho fosse primitivo e ele copiasse descaradamente das mais diversas fontes, seus roteiros eram uma verdadeira investigação antropológica e sociológica sobre a sexualidade do brasileiro. Tanto que suas histórias acabaram chamando atenção de cientistas famosos, como o antropólogo Roberto da Matta, que chegou a escrever textos analisando seus quadrinhos, e já se declarou fã do quadrinista.
Somente em 1991 foi desvendado o mistério que intrigou os incontáveis adolescentes nas décadas de 1950 a 1970: quem era Carlos Zéfiro? A resposta foi encontrada em 1991 pelo jornalista Juca Kfouri, diretor da revista Playboy, que identificou e entrevistou Alcides de Aguiar Caminha, o nome verdadeiro do autor dos quadrinhos eróticos que eram publicados em formato de revistinhas que cabiam numa mão, e incendiaram a imaginação da juventude brasileira. Avalia-se que Carlos Zéfiro tenha publicado mais de 600 catecismos, alguns com tiragem superior a 30 mil exemplares.
Parceiro de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito na clássica canção “A Flor e o Espinho”, o pacato funcionário público escondeu-se sob o pseudônimo famoso (o nome Carlos Zéfiro foi tirado de um autor mexicano de fotonovelas) para escapar da censura, manter o emprego e contornar possíveis reações negativas da mulher, uma católica militante – que acabou se transformando na maior incentivadora da sua fama tardia. Renegado durante décadas, Zéfiro ganhou notoriedade ao ser homenageado na capa do disco “Barulhinho Bom” (1996), de Marisa Monte. Depois da aparição na Playboy, saiu de vez da clandestinidade e foi tema do documentário “Zéfiro Explícito”, de Sergio Duran e Gabriela Temer, recheado das mesmas cenas picantes dos quadrinhos. Realizado em 2012, o filme tem a excelente narração de Paulo César Peréio e as saborosas ilustrações de Vini Wolf, do Copa Estúdio, que dão vida aos desenhos de Zéfiro. Contada em 15 minutos, a história de Caminha/Zéfiro é um deleite tanto para os nostálgicos dos catecismos, quanto para os que não puderam conhecer o talento e a criatividade excitante de um grande desenhista brasileiro. Em 2018, Alcides Caminha teve sua vida devassada nas 384 páginas do livro “O Deus da Sacanagem – A vida e o tempo de Carlos Zéfiro”, escrito pelo jornalista baiano Gonçalo Junior. Com contracapa de Ruy Castro, o livro traz uma meticulosa pesquisa e entrevistas com dezenas de pessoas, inclusive familiares do artista. “É um livro em que nada deixou de ser mostrado, inclusive a polêmica sobre o outro suposto Zéfiro, o desenhista Eduardo Barbosa”, explica o autor. Ao mesmo tempo, Gonçalo traça um rico painel sobre o mercado editorial de revistas de sexo no Brasil ao longo de todo o século XX.
Os “catecismos” de Carlos Zéfiro foram uma resistência ao moralismo reinante naquele Brasil dos anos de 1950 a 1970. Tive o privilégio e a sorte de degustar cada uma daquelas saborosas histórias, que de certa forma foram responsáveis pela educação sexual de grande parcela dos guris daquele período e que ainda hoje são tão atraentes e estimulantes – podendo ajudar na catequese de muita gente.
Paulo Kobielski é professor de História com especialização em Filosofia e Sociologia pela UFRGS. Trabalha com fanzines e quadrinhos na educação. Paulo escreve a coluna Dossiê Kobielski, para ler, clique Aqui. Paulo conquistou o Troféu Ângelo Agostini de melhor fanzine no ano de 2020, confira matéria Aqui. Paulo é um dos apresentadores do podcast cultural Coletive Som, A voz da Arte. Para escutar os episódios clique Aqui. Também confiram o episódio n# 02, apresentado por Patrícia Maciel e Luciano Xaba, entrevistando o Paulo Kobielski, clicando Aqui.
Dia30/09 Paulo Kobielski estará presente na
Cavalgando com Tex 2022
Dia 30 de setembro está chegando e, com ele, a 2ª edição de Cavalgando com TEX, evento online que irá novamente reunir pards dos mais diversos cantos do Brasil e do mundo.
Em 2021 a primeira edição foi um enorme sucesso, tornando-se o maior evento online da história dedicado ao personagem. Este ano, a programação será mais enxuta, mas feita com muito amor pelo ColetiveArts e por todos aqueles que são apaixonados pelo personagem criado na Itália, em 30 de setembro de 1948, por Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini, o Galep.
O Coletive, durante todo o dia 30, irá disponibilizar publicações especiais aqui no blog, dedicadas ao personagem e seus fãs. E a partir das 21h, no YouTube do Coletive, ocorrerá a live de comemoração do aniversário de 74 anos do ranger mais querido do faroeste.
Na live comandada por Israel Santiago e GG Carsan haverá muitos brindes a serem sorteados, e para concorrer, tem que dar o like no vídeo, começar a seguir o canal do Coletive, e ficar de olho na programação que será publicada aqui no blog, pois as perguntas do sorteio serão sobre essa programação toda especial.
Lugar de Texiano no dia 30 é aqui no Coletive, venha comemorar conosco essa data tão fantástica!
Para saber como foi o nosso primeiro "Cavalgando com TEX", clique AQUI.
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JOÃO AMARAL |
04 ANOS DE COLETIVEARTS,
CONTANDO HISTÓRIAS, CRIANDO MUNDOS
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2 Comentários
Excelente coluna.
ResponderExcluirMuito importante relembrar o trabalho desse grande cara que foi o Carlos Zéfiro
Nunca li catecismos, mas já li a respeito do Zéfiro. Não tenho certeza se foi numa informativa ou se fui num livro. Como falei pra um colega há mais de 20 anos, às vezes, excesso de informações causa amnésia. Hehe!!
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