NÓ DESATADO
Desperto com uma bola no estômago. Fico deitado avaliando aquele desconforto – um globo feito de ansiedade, desamparo, carência e em seu núcleo, medo puro.
Fico em pé e a bola se acomoda. Executo os procedimentos cotidianos e a rotina tem um efeito corrosivo. Resta um nó. A repetição dos atos matinais também bloqueia, por instantes, o pensamento de que minha vida hoje pode mudar por completo. Minha orfandade de 23 anos pode se extinguir.
Olho para o celular sobre a mesa e tenho um impulso de ligar para o único amor da minha vida. Toca só duas vezes até ouvir a voz e ele já sai perguntando como eu estou? Bem, dentro do possível. Ele insiste em ir comigo, refuto, o endereço pode estar errado. Se irrita, não teria gasto uma grana com o detetive à toa. Peço que me deseje sorte e ele cobra que eu ligue logo em seguida, aconteça o que acontecer.
Dentro do coletivo percorrendo ruas estranhas, meus sentimentos oscilam entre um contentamento pelo deslocamento sem paranoias nesse mundo vacinado, embora ainda use máscaras e o ímpeto de descer e pegar outro de volta.
Caminho pelo bairro residencial com algumas casinhas e prédios baixos. Sigo pela rua atento à numeração, nem sempre visível, até encontrar o endereço, um edifício de quatro andares.
Fico parado em frente, examinando a construção, como se pudesse me dar uma pista. Por que o sumiço? Por que nunca me procurou? Já tive alguma relevância em sua vida? Fecho os olhos, respiro fundo por três vezes e tento esvaziar a cabeça. Ando rumo à porta de entrada.
O meu indicador congela à um milímetro do botão. Fixo o olhar no número 207 e ouço passos no corredor. Sinto um estremecimento, me afasto do porteiro eletrônico, dou meia volta e saio do alpendre, controlando as pernas para não correr.
Atravesso a rua e ouço o ruído da porta se abrindo. Viro o corpo e me deparo com uma mulher de meia idade e longos cabelos louros, me olhando. Ela atravessa a rua e me sinto preso ao olhar dela, como o raio trator de uma “Nave Mãe”.
Para à minha frente. Abaixo a máscara. Ela esquadrinha o meu rosto, sorri, voz grave.
- Oi, filho.
Engulo em seco e balbucio.
- Oi, pai...
Nos abraçamos.
O nó desata numa enxurrada de lágrimas.
Texto: João Luís Martinez
Arte: Alice Santos
João Luís Martinez Alice Santos |
#temliteraturanarede
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