CONTRAPONTO

Dedicado a Laís Ramos e todas as mulheres que sofreram ou sofrem assédio ou abuso sexual. NÂO É NÃO!

 Meu corpo!

Quando alguém passa dos nossos limites, é incrível como não conseguimos reagir na proporção da raiva que o ato causa. Sempre acreditei que o dia em que algum homem tentasse me tocar sem permissão, eu conseguiria pará-lo na hora, acertar alguns tapas e ainda teria de me conter para não matá-lo espancando. Mas no momento em que aconteceu comigo, entendi que eles sempre serão mais fortes e nós sempre sentiremos mais medo e choque do que qualquer outro sentimento. Todavia a grande censura da história toda não é o erro que o homem cometeu, a falta de limite da parte dele, a falta de respeito, a falta de humanidade, a falta de hombridade, absurdamente o tabu está voltado para nós: mulheres.

Ainda lembro da minissérie Chiquinha Gonzaga em que apresentava, de forma bonita, como foi a superação dos diversos obstáculos da ilustríssima musicista brasileira. As maiores barreiras enfrentadas por ela foram o machismo e como a mulher era tratada feito objeto por todas as classes sociais brasileiras. Chiquinha Gonzaga não era apenas mulher, era filha de militar (o que amplifica ainda mais a repressão), filha de escrava e artista. Que desafio! Se hoje em dia (2023) ainda é difícil sobreviver com essas características, imagina em 1800! Porém essa mulher sobreviveu, se fortaleceu e brilhou! Num dos capítulos da série, uma jovem do cortiço o qual Chiquinha morava é estuprada por um vizinho. Na cena, a menina tentou se defender, gritou por socorro, mas quando alguém finalmente chegou, já era tarde. Naquele momento, invés de socorrer a vítima, acolher, levar ao médico porque esse tipo de ato machuca tudo por dentro e por fora, as pessoas - incluindo a mãe da garota - a repudiam e a culpam. Eu era criança quando assisti a cena pela primeira vez, mas ao assistir pela segunda vez - já adulta - entendi e me revoltei com o absurdo, a impunidade e a injustiça desse caso - que muito se repete atualmente e tem fundamento histórico!

Há muitos anos atrás, antes da Idade Média e do Cristianismo tomarem conta do mundo, muitos povos que habitavam as regiões compreendiam o homem e a mulher como dois seres diferentes, mas de responsabilidades importantes. A mulher era sacerdotisa, por ter forte ligação com a natureza e gerar vidas, ela também podia ser dona de terras, liderar grupos guerreiros ou ser conselheira. Uma das mulheres mais conhecidas dessa época foi Maeve, uma guerreira celta da Irlanda. Seu túmulo está no alto de uma colina e seu corpo foi enterrado na vertical, para que sua energia desça e suba em espiral, conectando céu e terra. Muitos místicos viajam até seu túmulo para meditar e receber a energia da Deusa.

Por serem as mulheres as maiores conhecedoras dos mistérios naturais da vida, e por muitos povos cultuarem essas crenças, rejeitando a igreja, os homens da onda cristã criaram uma série de leis e mitos condenando qualquer prática natural antiga, denominando-as de bruxaria. Se pegarmos a imagem do Fauno, um ser da natureza que simbolizava a fertilidade, veremos que é igual a do diabo. Foi a partir desse momento que inúmeras mulheres foram assassinadas, torturadas,  estupradas, humilhadas, sacrificadas e punidas por simplesmente serem mulheres.  Qualquer indício da sua natureza era podado. Qualquer mulher que soubesse um pouco mais do que lhe era permitido, qualquer mulher que mostrasse um pouco da sua feminilidade, do seu corpo ou do desejo sexual natural da vida, era morta como  bruxa e todos compactuam com essa violência. Não estou condenando, nesse texto, qualquer religião, considerando que muitas instituições religiosas atuais fazem bem às pessoas. Trago apenas a um panorama do passado, apontando para como esse crime contra o feminino nasceu, perdurou por muitos séculos e, atualmente,  no século XXI, ainda encontramos sintomas da tentativa de extermínio das mulheres.

Nem todos os casos acontecem de forma explícita, igual a era medieval. Atualmente, os crimes ocorrem de forma velada e justificada, presentes em crenças, diálogos, expressões e atitudes incrustadas na sociedade. A violência vem naquele julgamento pela forma como uma irmã se veste (“muito pelada, depois não quer ser estuprada”), pela rapidez com que a colega transou com o rapaz na noite (“deu fácil, hein! Essa daí não presta”) e até por ela ter sido assediada por outros homens (“Se isso aconteceu, é porque ela deu abertura! Ele não iria atacá-la do nada!”, “Deu abertura, ficou de conversinha com ele, ele achou que ela estava afim!”).

Eu sou uma mulher adulta, gosto de sexo e nunca pensei que todos os homens que falam comigo estão me “dando mole”! Já cruzei com homens semi nus na rua, na praia e na balada, contudo nunca arrastei nenhum deles para o canto e os violentei. A justificativa que inventam para isso tudo é que “homem é diferente, eles têm  instinto de caçador” e nós devemos nos conter o tempo todo. Mas eu digo: contenham-se vocês, homens!

Friso aqui algo importante: nem todos os homens são assim! Temos muitos, hoje em dia, com consciência, respeito e parceria. Não se trata de guerra entre sexos, mas do machismo hediondo que nos aprisiona sem correntes!

Se eu sou uma mulher mais alegre, aberta, que trata os homens com camaradagem estou dando margem para o “caçador” avançar. Ridículo! Para teorizar sobre por que eles não devem pagar pensão, porque as mulheres não respondem a todas as besteiras deles no Tinder ou porque eles não precisam pagar a conta do jantar eles têm muito raciocínio. Mas para abandonar os filhos que fizeram e para violentar, estuprar e agredir outras mulheres existe sempre a desculpa do “homem é sempre assim” e volta a cultura da culpabilização e sobrecarga das mulheres. Vamos para a posição de mãe até dos nossos agressores.

A maioria das mulheres desse país já sofreu abusos sexuais ou assédios, de menor a maior grau. Dificilmente vamos conhecer uma mulher a qual um homem não foi insistente, não passou a mão no ônibus ou na fila da escola, não tentou agarrar na balada ou até nos corredores da faculdade. Ainda assim, muitas mulheres se sentem inseguras de denunciar ou falar sobre esse tipo de agressão, porque ainda não nos sentimos resguardadas e certas de que a sociedade vê esse ato masculino como algo inaceitável.

Quando algo assim acontece, muitas de nós nos questionamos o que fizemos de errado para isso acontecer, afinal os de fora vão perguntar a mesma coisa “mas tu não deu abertura?”. Nos sentimos culpadas pela violência do outro. Isso não está certo! Precisamos falar sobre isso sim, precisamos pensar, precisamos ver com clareza toda essa podridão e apoiar nossas irmãs, pois o julgamento nem sempre vem da boca de um homem. A maioria de nós já foi injusta com outra mulher em  algum momento, porque temos a competição fixada nos nossos inconscientes: a  melhor casará com o senhor Feudal mais rico da sociedade. Deixa eu lembrar que o senhor feudal já não existe mais, assim como o espartilho e a alcova!

Mulheres desse país, libertem-se dessas alcovas as quais ainda gritam histericamente suas avós, bisavós, e tataravós. Nossas paredes históricas sangram com as lágrimas de todas as mulheres condenadas, injustiçadas, presas e mortas. Porém nós somos diferentes! Nós podemos fazer diferente. Ninguém mais tem o direito legal de puxar uma arma e nos roubar a vida porque fomos estupradas e perdemos nosso valor. Nosso valor não está no nosso corpo e no que podemos proporcionar aos homens. Nós temos o direito, agora, de nos defender e sermos ouvidas! Então falem alto, vibrem, sejam o que quiserem, falem com quem quiserem, sorriam, pulem e corram, sintam o vento da liberdade e não se encolham  com qualquer tentativa ignorante de diminuí-las. Errado não é o pássaro que foi engaiolado, errado é o caçador que ousou prender, abusar ou tocar numa vida que não é a sua!


Miriam Coelho

Miriam Coelho é artista das imagens e das palavras.


DIA 21/05, CINCO ANOS DE COLETIVEARTS,
CONTANDO HISTÓRIAS, 
CRIANDO MUNDOS!
O Coletive repudia toda e qualquer
forma de assédio ou abuso sexual!
NÃO É NÃO!

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