A MARGEM NAU

 

O DESIGN PSICODÉLICO 

DE ROGÉRIO

Rogério Duarte (1939-2016) foi uma figura essencial e multifacetada do cenário cultural brasileiro. Nascido na Bahia se destacou como um artista interartes, deixando marcas em diversas áreas, incluindo design gráfico, composição musical, interpretação, tradução e poesia. Sua atuação versátil e suas contribuições em diferentes campos das artes tornam-no uma figura icônica, cujo legado continua a influenciar e inspirar as novas gerações. A partir da década de 1960, envolveu-se na criação de projetos de cartazes e publicações para a União Nacional dos Estudantes (UNE), por meio do Centro Popular de Cultura (CPC), e participou significativamente da imprensa alternativa em diversos projetos distintos, como o jornal Flor do Mal (1971), ao lado de artistas como Jorge Mautner, Luiz Carlos Maciel e Caetano Veloso.

Jornal Flor do Mal (1971) - Arquivo pessoal

Produziu também inúmeras capas de discos com um design diferenciado aos padrões usuais da época, que impactou nossas memórias musicais, acompanhando obras icônicas das décadas de 1960 e 1970. Essas capas são testemunhas da riqueza criativa da época e da maneira como a música e o design se fundiram para criar uma experiência visual e sonora singular.

LP Cantar (1974), Gal Costa

Com o grande desenvolvimento da indústria fonográfica no século XX, os LPs começaram a se destacar pela qualidade visual de suas capas, que antes possuíam um padrão definido com a imagem do artista e o título do disco. Com o passar do tempo, a capa passou a ser vista como um importante investimento para a venda do produto musical. No caso do Tropicalismo, que obteve grande visibilidade através da música, as capas de discos foram concebidas como parte essencial de seu manifesto e Rogério Duarte, seu principal mentor. O álbum do cantor e compositor Jorge Mautner, produzido em 1974, expressa a relação de Duarte com a contracultura e a orientalização do Ocidente.

JORGE MAUTNER (1974)

Percebemos nas capas, a influência do psicodelismo, que é resultado da experiência com drogas alucinógenas, permitindo a intensificação das cores, deformações e ilusões de ótica, além de uma visão detalhista microscópica, efeitos parapsicológicos (BARRETO, 1975), entre outras abordagens surpreendentes.

Caetano Veloso (1968)

A capa do álbum de Caetano Veloso, intitulada “Caetano Veloso”, produzida em 1968, apresenta excesso de elementos visuais, contudo, a centralidade de Caetano não é tirada de evidência. 

Jorge Caê Rodrigues (2007) analisa:

A ilustração de que Duarte se apropriou para a capa de Caetano guarda em si algo de kitsch, de um surrealismo barato. O contraste entre o arcaico e o moderno que o Tropicalismo expunha também está presente na capa: a composição é convencional – foto do artista no meio, nome em cima, centralizado, mas, por outro lado, os elementos estéticos-formais (tipografia, os fundos cromáticos, elementos pictóricos são fortes, agressivos, exuberantes). No meio de tudo isso, o retrato três por quatro do artista, com um olhar incisivo, estabelece um diálogo com o observador. O jogo do claro/escuro da foto torna a face do artista enigmática, enfatiza o aspecto surreal da capa. O verso da capa, em preto-e-branco, repete o nome do cantor no alto do disco e uma moldura com as mesmas características kitsch envolve o texto manuscrito, totalmente livre do grid funcionalista. As capas são uma salada de referências, assim como é a Tropicália. O mundo pop, desenvolvido, psicodélico, atômico, eletrônico era triturado e lançado sobre o país tropical, subdesenvolvido, marginal. A esta multiplicidade Ismail Xavier chama de jogo de contaminação. Tudo isso pode ser visto no design da Tropicália, que rompia com a previsibilidade, abrindo  um novo espaço de possibilidade da contemporaneidade. (RODRIGUES, 2006)

Além das figuras mitológicas, como o dragão e a cobra estampados na capa (relacionados ao contexto de repressão ditatorial), outra referência perceptível é a influência da antropofagia oswaldiana expressa pela exuberância exótica e tropical, bem como pelas cores vibrantes sem nenhuma contenção (SANTOS, 2015). A presença da penca de bananas nos remete à icônica interpretação de "Yes, nós temos bananas"; por Carmen Miranda (1937), representando a brasilidade do projeto tropicalista em si. Além disso, é inevitável apreciar a capa sem estabelecer uma conexão com a cultura pop e o movimento hippie, especialmente pela presença de uma folha que aparentemente representa a cannabis sativa (maconha). A metáfora da liberdade e o anseio por ela podem ser verificados em todas as produções de Duarte. 

O poeta, o designer, o hare krishna, o “tropikaoslista” torturado pela ditadura militar e internado em clínica psiquiátrica coexistem numa só pessoa. Rogério Duarte reflete sobre sua prisão em 1968: “(...) Primeiro, a prisão em 1968, depois o hospício em 70. Foi um processo doloroso do meu novo ser que nascia em metanóia (...) Chego a achar que valeu a pena. Torna-te quem és. Como Nietzsche. O êxtase e a pena fazem com que a alma não seja pequena” (DUARTE, 2003, p. 12 e 13).


Referências: 

DUARTE, Rogério. Tropicaos. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003.

RODRIGUES, Jorge C. O Design Tropicalista de Rogério Duarte. In: MELO, Chico H. de. (Org.) O Design Gráfico Brasileiro dos Anos 60. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

SANTOS, Jaqueline Ferreira dos. O lugar de Rogério Duarte sob o sol da Tropicália. 2015. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade Federalda Bahia, Salvador. 2015.

Documentário sobre Rogério Duarte: “Rogério Duarte, o Tropikaoslista”, 2018, José Walter Lima.



Patrícia Marcondes de Barros é Professora e pesquisadora nas áreas de História e Literatura (UEL), é doutora em História pela UNESP e autora do livro "Panis et Circenses": a ideia de nacionalidade no Movimento Tropicalista (2000). Organizou a obra "Sol da Liberdade", escrita pelo filósofo e artista Luiz Carlos Maciel (2014) e foi uma das organizadoras da coletânea "Transas da contracultura brasileira" (2020). Colabora atualmente com as revistas culturais: Acrobata - Literatura, Artes visuais e outros desequilíbrios e Katawixi - Cultura, Artes, Filosofia e Educação.

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