Doidices da cabeça
Todo profissional, independentemente da área, tem histórias a contar. Algumas são engraçadas, outras nem tanto. Algumas são inusitadas como a que irei relatar.
João Pedro*, ou JP, como era chamado pelos mais próximos, chegou ao consultório todo espiado. Entrou na sala de atendimento se autodescrevendo como “doido da cabeça”. Falou que já tinha ido a outras psicólogas e que não havia gostado de nenhuma delas. Ou seja, possivelmente eu seria a próxima dessa lista. Então fiz o acolhimento inicial e perguntei por que ele pensava que era “doido da cabeça”. JP contou uma série de situações ficando evidenciado um comportamento excêntrico.
JP tinha um fascínio pela Geografia. Era só dizer o nome da cidade, por menor que fosse, que ele era capaz de dizer em que país se localizava e o número de habitantes do local. Apresentava uma capacidade de memorização fora do comum. Rituais eram com ele mesmo. Não comia nada que iniciasse com a letra “s” na segunda-feira, nada com a letra “t” na terça-feira e assim por diante. Além disso, era um grande colecionador de embalagens vazias de erva-mate e o relato das excentricidades não findavam.
Mas o marcante desse atendimento foi o olhar dele. Era um olhar de riso e de estranhamento. Era um olhar que gritava: “-Tem algo esquisito aqui.” Era um olhar que me deixava desconfortável. Comecei a pensar: “-Será que escovei bem os dentes? Será que minha blusa está do avesso?...” Algumas hipóteses passaram na minha cabeça. O que era certo, tinha algo de diferente ali.
No final do atendimento, para minha surpresa, ele manifestou a vontade de agendar uma segunda consulta. Oba! Não entrei na lista das psicólogas reprovadas. Acompanhei JP até a recepção da clínica, fizemos o agendamento com a secretária e nos despedimos.
- Fernanda, tu tá meio-doida, né? – essa foi a pergunta da secretária.
- Por quê? – perguntei.
- Olha o teu braço! – ela respondeu.
Naquele momento tudo ficou muito claro. Eu estava com dois relógios no pulso (um com pulseira dourada bem chamativa e o outro com pulseira de couro preta). Não sei como consegui essa façanha sem ao menos perceber os dois adereços. Fiquei pensando que talvez JP tenha gostado da consulta porque havia entrado uma psicóloga “doida da cabeça”, já que ninguém usava dois relógios no pulso ao mesmo tempo.
Na semana seguinte, lá estava JP para o atendimento. É obvio que ele procurou com o olhar os dois relógios no meu pulso. Porém, dessa vez, ele entrou somente um relógio e algumas pulseiras coloridas.
O tratamento seguiu semanalmente e depois de oito meses, com o quadro evoluído positivamente, JP teve alta dos atendimentos. Dias após o término do tratamento, lá estava ele me aguardando na recepção da clínica.
- Vim aqui, Dra. Fernanda, te trazer um presente em agradecimento por tudo o que fez por mim. Nesse momento entregou uma caixa. Era uma caixinha quadrada com uma linda embalagem feita com muito cuidado. Dentro dela tinha um relógio de mesa.
- Doutora, percebi que a senhora não usou mais dois relógios no pulso, mas a senhora pode ter dois relógios na mesa do consultório. Assim seus pacientes não vão dizer que a senhora é “doida da cabeça”.
Nesse instante, nós três – eu, ele e a secretária – rimos muito. Possivelmente JP tinha permanecido em atendimento por achar que eu era “doida da cabeça” pelo episódio ocorrido na primeira consulta. E JP não estava errado. Como disse Caetano Veloso na música Vaca Profana “De perto, ninguém é normal.”
(1) Foi usado o nome João Pedro* de forma fictícia para preservar a identidade do paciente.
FERNANDA ROCHA |
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