O UNIVERSO CONTA

 

Um sonho tão cinzento

Parte -1

Fecho a porta rapidamente, antes que alguém me veja. Por que o quarto dos fundos é proibido? Só tem velharias! Bem em frente a porta fica um biombo antigo, papai usava para me contar histórias até os meus quatro anos; eu ficava doente e não podia sair da cama, então lá vinha ele com o biombo de madeira nos braços. Os vários desenhos esculpidos na cor bege sempre me distraiam quando a história terminava, como se a mágica nunca cessasse. “Será que tem outros brinquedos aqui?”, indago e começo a vasculhar todas as gavetas e portas dos armários velhos. “Atimmm!” A poeira já estava se manifestando no meu nariz.

Mecho em vários objetos. Uma vitrola, uns panos fora de uso, objetos que nem sabia o que eram, algumas tapeçarias enroladas... Ah, e o baú cheio de discos para a vitrola! No meio de todo aquele quarto, enquanto eu vasculho o armário próximo a janela, algo chama a minha atenção: na estante, bem do lado, tem uma boneca de porcelana, sentada. Usa um vestido verde-escuro, aveludado, com rendas brancas. Os cachos, cinza-claros, caem-lhe até a cintura e os olhos, da mesma cor, pareciam feitos de água. Uma boneca estranha, mas encantadora! Aproximo-me dela quase que sem respirar e, quando a toco, sinto como se minha visão se turvasse, uma neblina cinza clara cobre o lugar, úmida e aconchegante, como se eu entrasse num transe profundo e esquecesse do resto do mundo. Aliso seus cabelos, ajeito o vestido, linda! Saio correndo do quarto com ela em meus braços.


– Hey, não corra pela casa, pirralha! - diz meu irmão, subindo a escada de  madeira, enquanto eu ia pelo corredor, em direção ao meu quarto.

– Não enche, ôôô coisa feia! - exclamo, parando na ponta da escada. Mostro-lhe a língua, com a boneca escondida atrás de mim, depois corro mais ainda, batendo os pés bem forte no chão como complemento da afronta.

Fecho a porta antes que ele possa entrar. Onde irei guardá-la? Precisava escondê-la! Só havia um lugar onde vovô ou a empregada não mexeriam: debaixo do colchão! Coloco-a numa região que eu podia me deitar sem amassá-la, só para experimentar o esconderijo, depois continuo a alisar os cabelos. Divido os meus maiores segredos e ela parece me entender, já que também é um deles. A apresento todos da minha família pelo álbum de fotografias, que guardo no criado-mudo, ao lado da minha cama.

– Laura, Bruno, venham almoçar! - o vovô grita, um pouco fatigado, pela escada. Escondo a boneca no lugar planejado e saio rapidamente, antes que vovô, ou Taíza, venham me chamar pessoalmente.

Depois do almoço continuamos o jogo de damas, vovô me ensina as regras enquanto Bruno faz uma pirâmide com as pecinhas que eu vou perdendo. – “Ha! Você é muito ruim nisso! Nem que vovô viva um milhão de anos. Nem isso!” – ele diz, rindo- se de mim, enquanto sacode os ombros e mostrava a língua, 12 anos e ainda é um crianção!

Minhas mãos se apertam sobre mesa madeira lustrosa, o dia parecia entardecer lentamente. Tudo lembrava-me a boneca e aquela aparência tão peculiar. “Meu segredo!” sussurrei para mais uma pecinha que perco no jogo.

O jantar chega, por fim. Batatas fritas e carne de Hambúrguer. Como rapidamente e corro para o banho. Até colaboro com Taíza, geralmente resisto ao banho, detesto água! “Que estranho, você nem gritou, hoje! Essa é a Lau que eu conheço?” dizia ela, fazendo ares de espanto e “óóóó” com a boca. Esfrega shampoo – com vontade – na minha cabeça “cuidado os olhos, Lau, fecha os olhos!”

Ao terminar o banho e voltar para o meu quarto, o vovô vem dar um beijo de boa noite, como sempre. “Estou gostando de ver, Lau. Taíza disse que você foi bem comportada hoje, continue assim.” diz ele, sorrindo sob os óculos, com aqueles olhinhos azuis que tanto gosto de olhar. Imagino coisas a ver com água doce e céu sem nuvens quando me concentro nos olhinhos do vovô.

– Vovô, por que você não deixa ninguém entrar no quarto dos fundos? - 
pergunto.

– Ah, Laura, não venha de novo com a mesma história. Você já viu o que  tem lá, uma vez, não há nada que possa servir de brinquedo!

– Nem vi direito... mas... eu vi uma boneca estranha, com um vestidinho  verde e cabelos cinza. De quem era? Posso pegá-la? Sua expressão muda repentinamente, seu rosto se fechou num tom muito sério e fala rispidamente comigo.

– Laura, vai dormir. Já está tarde. Não entre lá e pronto! Ouviu? Está  proibida! Boa noite e não faça esse beiço!

– Boa noite, vovô... – digo muito triste, enquanto ele fecha a porta atrás de  si...

Espero uns segundos e pulo da cama, para pegar a boneca sob o colchão.

Ah, que estranho, ela parece diferente de mais cedo. Seu rosto está com uma expressão apreensiva, como se estivesse triste! Alisei os cabelos cinzentos e dormi com ela ao lado, olho no olho. Um sonho tão cinzento…

Eu estou na casa do vovô, tenho certeza! É dia. Mas as coisas estão diferentes, os móveis, as cortinas... tudo! E o quarto dos fundos, o proibido, está aberto. Sigo até ele e meus passos não podem ser ouvidos, é como se eu não estivesse naquela cena de verdade. Dentro do quarto não tem aquelas velharias nem o pó, mas um menino brincando. Ele usa roupas antigas, iguais às que o vovô tem, socadas num dos armários velhos do quarto proibido. O menino tem olhos azuis - iguais aos do vovô - e cabelos bem castanhos, deve ter 11 ou 12 anos. Está sentado num canto do quarto, segura uns retalhos de panos, umas peças estranhas de madeira, além do material de costura. Logo ele grita para alguém do outro cômodo:

– Achou, Lâmia?

– Não! Vamos ter que usar só esses panos para construir um monstro feioso... - responde uma voz de menina polida, que surge atrás de mim. Vou me virando para ver quem é, mas ela atravessa meu corpo antes que eu termine o giro. É a minha boneca! Só que estava viva. Não, não pode ser a minha boneca. Como é possível? Os cabelos cinza claros caídos até a cintura – ainda mais bonitos –, o olhar quase branco e seus lábios vermelhos, bem carnudos, criam uma sensação hipnotizante.

As mãos dela, tão claras como a porcelana que criou vida, fazem um cafuné nos cabelos do menino, que logo se levanta e retribui o carinho acariciando o rosto da menina. Ambos sorriem um para o outro, entrelaçam as mãos e sentam lado a lado para construir o tal boneco.

CONTINUA NO PRÓXIMO SÁBADO…


Miriam Coelho


"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

COLETIVEARTS, 06 ANOS DE VIDA,
CONTANDO HISTÓRIAS, 
CRIANDO MUNDOS!


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