Papicu dos pés à cabeça
Desde que voltamos a morar no Papicu, a gente tem se deparado com o estado deplorável da limpeza pública. Tem quarteirões inteiros cujas calçadas desaparecem sob sacos de lixo, pratos de isopor, garrafas plásticas, vidros, latas, boletos e embalagens de toda sorte. Quando não se trata de material reciclável, são pombos em decomposição, restos de comida e excrementos animais que contribuem para a sujeira e o cheiro característicos do bairro. Vejo inclusive – não poucas vezes – saquinhos de cocô cheios, largados por ali. Engraçado; a pessoa tem a consciência de limpar as descomilanças do seu cachorro, mas, em vez de jogar o saquinho na próxima (ou não tão próxima) lixeira, o rebola na rua. Faz sentido isso? Já vi até saquinho de cocô amarrado em galho de árvore, pra você ter uma ideia. O sujeito deve ter procurado uma forma de não sujar o chão, e resolveu então sujar o espaço acima do chão. Bem-vindo ao Papicu – coisas sem lógica nem cabimento você encontra aqui!
Mas toda essa introdução, na verdade, é só pra dizer que, desde que voltamos a morar pros lados de cá, ninguém entra no apartamento sem antes se submeter a um procedimento de pés. Para nós, bípedes, é coisa simples: consiste em tirar tênis, chinelo ou quaisquer outros tipos de calçado que tenham estado em contato com as ruas do entorno. Já pro Chico, envolve lenços umedecidos e higienizantes que passamos nas patonas dele após cada passeio. (Finalmente um sentido praquele comando de dar a pata!) E ele, tão bonzinho, colabora levantando pata por pata sem botar o menor boneco. Dito tudo isso, posso ir direto ao ponto.
Aconteceu um dia pela tarde. Estávamos finalizando nosso segundo passeio diário, Chico trotando fofinhamente do meu lado, pensando na tigela d’água que o esperava em casa, sem imaginar nada ruim. Já eu, para variar, estava na eterna busca por uma lixeira onde depositar o saquinho com os dejetos dele que, como boa cidadã, havia recolhido ao longo do percurso. Aí eles apareceram. Do nada, ou melhor: de trás. Chegaram de repente, sem aviso nem advertência, e foram direto pro pescoço do Chico. Eram dois. Dois buldogues fortes, um de cada lado. A calçada deserta. Nenhum dono à vista. Chico pego de surpresa, se revirava, guinchava, tentava se desviar das mandíbulas alheias, me puxava pra rua em desespero. Os carros passando. Eu segurando a guia com força e gritando e batendo nos agressores com o único objeto que tinha na mão: o saquinho de cocô. Mas eles não estavam nem aí pro meu PASSA-PASSA! e meu TOMA-ISSO-E-ISSO-E-ISSO! e continuavam investindo no ataque.
Enfim, uma brecha entre os carros. E eu corri. Corri puxando o Chico junto. Desembestamos pela rua como se fosse nossa última chance. E os buldogues atrás, nos perseguindo pelo quarteirão inteiro até o portão do condomínio. Mas se é verdade que eles eram mais fortes que Chico, também eram mais pesados e tinham as pernas mais curtas. Essa foi nossa sorte.
Dentro do prédio, continuamos subindo as escadas na carreira. Finalmente a salvo, na porta do apartamento, sem fôlego e com o coração a mil, fui fazer o procedimento de pés do Chico. Foi aí que percebi: o saquinho, até agora preso na minha mão, estava rasgado e vazio. Já minhas pernas apresentavam um desenho salpicado em marrom, com cheiro de Papicu.
Entreguei o Chico pra Larissa e fui direto pro chuveiro cuidar do meu próprio procedimento. Nesse caso, dos pés à cabeça.
Yvonne Miller Foto: Thaís Vieira |
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