A falta na abundância
Foi no antigo Cine Fortaleza. Na tela a jovem e loura atriz Sharon Stone fazia história com fulminante cruzada de pernas em “Instinto Selvagem”. A cena mostrava policiais trajando paletó e gravata, sentados em comissão diante dela, como se precisassem da força do grupo para enfrentar o poder feminino em ação. Com a calculada movimentação de Stone eles ficaram mudos. Mal respiravam, por instantes esquecidos do motivo pelo qual estavam ali: investigar a morte do ex-marido dessa misteriosa interrogada.
Na plateia repercutíamos a tensão vivida pelos personagens, em clima entre o mórbido e o erótico, ansiosos por saber como reagiria o ator principal Michael Douglas, um dos investigadores. O histórico profissional de Michael era amplamente favorável: ele já dera mostras de comprovada resistência em outros filmes; por pouco não havia morrido em uma história semelhante, com Glenn Close no papel de vilã. Mas agora toda essa experiência parecia inútil: diante da nova contraente, era como se ele não tivesse aprendido nada. Deixava-se simplesmente levar, entre curioso e fascinado, pelas artes daquela mulher com nome de pedra.
Do outro lado Sharon brandia suas armas, acenava promessas líquidas no olhar de longos cílios, os gestos precisos e lentos de aranha viúva-negra, prestes a enredar vítimas na sua teia, envelopá-las em casulos e depois abandoná-las à própria volúpia. Mudança de cena. Já não estávamos mais no interrogatório policial, e o jogo seguia empatado entre Sharon e Michael. Foi aí, nesse momento decisivo, que ele – o homem da lei dura, a encarnação da justiça cega com a espada na mão – sucumbiu duplamente: caiu nos braços da loura, ao tempo em que despencava do alto da fama. É que na entreluz em que se despiu, já nas cenas de intimidade amorosa com a femme fatale, ele descuidou-se terrivelmente. Ficou nu e de costas, sem perceber que assim quebrava a mística da chamada quarta parede.
Era a nêmesis abominável, a aura do galã instantaneamente derretida pela ridícula visão de duas bandas tristes e secas, que juntas mal compunham um mínimo traseiro digno de Hollywood. Com a mágica desfeita por gargalhadas e vaias a tomarem conta da sala do cinema, o despeito até então guardado em nossos corações projetou-se em cruel acerto de contas. Revelava-se a verdade em toda a sua nudez: Michael Douglas, o filho de Espártaco Kirk Douglas, era praticamente desprovido de bunda ! Dito na gíria local: ele era sulé!
Situação constrangedora e irremediável. Como poderiam os deuses da sétima arte maltratar assim nosso herói? Por que o diretor não salvara a edição, tomando outro plano de filmagem mais favorável, da cintura para cima? Teria sido a corrida para estrear, a pressão de compromissos mantidos com os produtores? Não teria sido melhor, como último recurso, interromper a película nesse momento de desdouro, fazendo pausa para comerciais? Agora estava sem jeito: míseros segundos transformaram uma aventura erótica em tragédia cômica, fazendo de uma respeitável carreira motivo de troça.
Certamente nossos exigentes padrões estéticos nacionais tinham sua parcela de culpa no episódio, comparados ao discreto figurino da moral de costumes anglo-saxã. Psicanalistas e psicológicos teriam muito o que dizer sobre processos de catarse e de compensação entre indivíduos de sociedades com abundância e de sociedades nem tanto. Só sei que aprendi uma lição fundamental naquele dia: por mais que tudo pareça estar definido e a vitória garantida, a sorte pode sempre nos pregar uma peça, nos momentos mais imprevistos. E pelas costas, para todo mundo ver.
Paulo Malburk |
PROPÓSITO DE NÃO SER
A CULTURA E A ARTE!
3 Comentários
Excelente, Paulo. Muito divertida e interessante. E esse final? Adorei.
ResponderExcluirSaiu como anônimo, mas era meu. Bjs
ResponderExcluirObrigado querida anônima Fernanda, grande escritora! Assinado: A. Utor.
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