
Onde tem uma, tem duas
Eu sempre falei que cobra tem cheiro. Um misto de suor com coisa podre e pneu queimado. Sem saber, Chico está me dando razão. Foi só abrir a porta do banheiro, onde o havia prendido, que ele saiu em disparada e agora, focinho grudado no chão, está refazendo direitinho o percurso da cobra: começando embaixo da escada, contornando o sofá e atravessando a sala em direção à porta. Quase lá, desenha um pequeno desvio bem no lugar onde a cobra tentou fugir pra cozinha, antes que eu – prolongada e representada pelo rodo – conseguisse redirecioná-la e, finalmente, fazê-la sair de casa. O que não consegui foi convencê-la de subir no rodo para arremessá-la por cima do muro. Parecia tão fácil quando vi seu Jorge fazendo dois dias antes: era só colocar o final do rodo na frente dela, esperar ela subir, levantar e... bom voo! Mas não. Após diversas tentativas, em que ela parecia cada vez mais irritada – levantando a cabecinha, serpenteando com rapidez sobre as lajotas da varanda e tentando me desnortear com abruptas mudanças de direção –, desisti. Com o rodo inútil na mão, observei ela descer da varanda, deslizar por cima das pedrinhas que cobrem o chão da garagem e esconder-se atrás da lixeira, onde a luz da casa mal chega. Ainda assim a vi, poucos minutos depois e encoberta pela meia-sombra da noite, sair rastejando em direção ao minúsculo canteiro perto do portão, onde se enfiou entre as plantas e ficou.
É a segunda cobra em três dias. A primeira apareceu na segunda-feira de manhã. Acabava eu de voltar do passeio matinal com Chico e entrava no banho, quando percebi primeiro um cheiro esquisito e depois uma coisa estranha entre o box e a máquina de lavar. Um cordão preto e amarelo, que no próximo instante sumiu debaixo da máquina só pra reaparecer logo depois do lado de dentro. Por uns segundos nos olhamos pela tampa de vidro, a cobra e eu, eu e a cobra, tentando adivinhar os pensamentos uma da outra. “Quero ver tu ficar aí quando começar a centrifugar”, falei finalmente, e fui tomar banho. Mais tarde, quando ouvi os barulhos da máquina, entrei novamente no banheiro e espiei pelo vidro da tampa. Lá estava ela, curtindo o carrossel.
Confesso que eu gosto de cobra. Nos meus tempos pernambucanos, quando morava no meio da mata mesmo, tive contato com cobra coral, arco-íris, cipó, caninana, cascavel, jiboia e surucucu, mas sempre fora de casa. Às vezes tomávamos café na varanda enquanto a caninana fazia ioga entre os galhos da pitangueira. Isso quando não estava atrás dos filhotes do bem-te-vi. Depois passamos um ano na Amazônia paraense e não vi cobra nem de longe. Só ouvia falar de sucuri e jararaca como ouvia falar de Matinta Pereira e de Homem-que-vira-porco. Ver com meus próprios olhos, nada. E agora, nem dois meses após nossa chegada em Santa Catarina, que me fora apresentado como o mais alemão dos estados brasileiros, uma cobra tá fazendo do meu banheiro um parque de diversões. É, eu gosto de cobra, mas não sei se a cobra vai gostar de mim se eu tirar o brinquedo dela. Ou, no caso, se eu tirá-la de dentro do brinquedo dela, que é, antes de qualquer coisa, minha máquina de lavar roupa. Roupa que precisa ser estendida. Roupa recém-lavada e devidamente cheirosa. Roupa que eu agradeceria se não ficasse impregnada de uma fragrância de suor-com-coisa-podre-e-pneu-queimado.
Foi aí que Larissa chegou em casa e chamou seu Jorge. Seu Jorge não só é dono de uma fazenda ao lado do local onde Larissa trabalha, mas também dono de uma vasta experiência com tudo quanto é bicho. Sendo assim, ele veio, viu e venceu. Ou, pra dizer a verdade: veio, viu, pediu um rodo e venceu. Colocou o cabo na frente dela, esperou ela subir e, sem a menor pressa, levou a bichinha até a varanda onde a catapultou por cima do muro. A póbi deve ter confundido o rodo com outro brinquedo no parque de diversões. “Vocês ficam com medo de graça, é só uma cobra d’água”, explicou seu Jorge na ocasião. E acrescentou: “Fiquem de olho. Onde tem uma, tem duas.”
Esta noite, dois dias depois, lembrei das palavras dele. Ia subir pro quarto, quando reparei, debaixo da escada, mais um cordão preto e amarelo. Prendi o Chico no banheiro e fui pegar o rodo. Não pode ser tão difícil, pensei.
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| Yvonne Miller Foto: Thaís Vieira  | 


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