MICROSCOPIA DO OLHAR

 

O BANCO

Todos os dias pela manhã costumava andar pela praça central da cidade. O médico recomendou
que exercícios físicos fariam bem. Optei pelas caminhadas, aliando beleza ecológica, reflexão, boa
música no fone de ouvido e qualidade de vida. Era uma praça comum, com muitas árvores, pracinha
para as crianças, trilhas de passeio e bancos para os enamorados. Tinha o costume de observar a vida
acontecendo por lá enquanto caminhava. Havia um banco específico perto de um pequeno lago que era
muito procurado pela sua visão bucólica. Eu nunca o encontrei disponível, mesmo passando todos os
dias por ali.

Em um desses dias que saí mais cedo para os exercícios diários encontrei poucas pessoas pelo
caminho, outras que não eram as conhecidas habituais. Algo me chama a atenção naquele banco da
frente do lago. Está sentado ali um senhor, de cabelos brancos, com um cigarro em uma das mãos e um
livro na outra, de pernas cruzadas, imerso na leitura e na fruição do lago. Vou caminhando ao seu
encontro e reconhecendo algo de familiar nele, sem saber ao certo o quê.

- Pai?

Ele se levanta, fecha o livro, me dá um abraço forte e longo. Sinto o seu coração bater forte. É
real.

- O que está fazendo aqui? Como…

- Que bom ver você, filha! Vem, senta aqui, vamos aproveitar o tempo! Que lago lindo, não?

- Sim, ele é mesmo, mas...estou confusa…

- Não precisa ficar assim, eu estou aqui, não estou?

- Está.

- É isso o que importa.

Ele me sorri, dá uma tragada no cigarro, volta a cruzar as pernas, contempla o lago. Eu fico sem
palavras.

- Faz muito tempo, não é? O tempo é algo tão curioso: quando se está longe, parece eternidade,
quando se está perto, é finitude...Que bom que posso estar com você agora, pelo menos nesse curto
espaço de tempo. Me fale de você! O que tem feito? Os anos foram generosos com você, é uma mulher
madura muito bonita.

Entre surpresa e impactada por aquele encontro, procuro na mente frases coerentes para
entabular conversa com ele. Aos poucos retomo a lucidez.

- Eu...eu sou professora. Gosto do que faço, amo a leitura por causa do seu incentivo.
Ele sorri com orgulho, bate com os dedos no livro que lê.

- Você faz falta, pai.

- Nem tudo é como gostaríamos. Eu também não queria estar longe, mas quem somos nós ante
os mistérios insondáveis do universo?

- Somos nada…

- Também não é assim, não seja tão pessimista...se fôssemos nada, eu não estaria aqui.

- Faz sentido.

Nós dois ficamos olhando para o lago. Eu, com o cérebro fervendo de questionamentos, mas, ao
mesmo tempo, paralisada pelo inusitado do encontro. Não sei o que se passava na mente do meu pai.
Pelo menos seu rosto era sereno e contemplativo.

- Eu posso te fazer uma pergunta, pai?

- Claro.

- Você não sente saudades?

Ele dá uma última tragada no cigarro, folheia o livro que estava lendo despreocupadamente,
talvez buscando uma resposta para aquela pergunta. Era difícil falar sobre isso? Até hoje eu lembrava

dele, da sua influência inquestionável na minha vida, nas minhas escolhas, nos meus gostos pessoais. A
importância dele pra mim sempre foi incontestável.

- Pai, você não sente saudades?

Com um suspiro fecha o livro, olha à frente em direção ao lago, olha para mim com seus olhos
marejados. Sim, a saudade estava ali, talvez como uma represa prestes a rebentar.

- Você não sabe o quanto lutei para estar aqui hoje na sua companhia, para ter uma chance de
ver e falar com você. Como eu disse, o tempo é carrasco e benfeitor. Me dê a sua mão.
Alcancei minha mão. Ele segurou forte, levou até seus lábios e a beijou. Lábios quentes, mão
quente. Uma lágrima escorreu de mim.

- Lembra quando passeávamos de mãos dadas? Você não podia ver um carrinho de sorvete, me
puxava até lá para comprar. Sempre foi muito comilona e imediatista.

- Continuo sendo...

Nós dois rimos discretamente. Sentia a angústia da ampulheta cobrando o tempo, esvaindo os
poucos grãos de areia restantes. Senti um longo aperto no peito.

- Não vá mais embora, pai.

Ele me olha. Sorri. Aperta com força minha mão. Me dá um longo beijo no rosto.

- Eu nunca fui.

Abro os olhos e enxergo o lago, na sua serenidade e constância. Vejo os pássaros, o esplendor
do verde nativo, o sol batendo na água refletindo gotas cristalizadas de luz. Ainda sinto o beijo e o calor
daquela mão na minha, no entanto, ele não está mais ali. Olho para o lado do banco vazio, porém, o
vazio da saudade no peito está preenchido, está pleno de amor e de certeza.

E, pela primeira vez, desde que comecei a caminhar por aquela praça, consegui sentar naquele
banco, contemplar o tempo e apalpá-lo com meu coração.


PATRÍCIA MACIEL




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