ISSO DA UMA CRÔNICA

 


SOBRE MESAS E ARMÁRIOS


É a minha primeira lembrança. Devo ter uns três, quatro anos. Restaurante, meia-luz, o tilintar de talheres ao encontro com a louça, vozes, risos, cheiro de queijo gratinado e cebola frita no ar, garçons de camisa branca e calça social que se movem ágeis entre as mesas. Numa delas estão sentados meus avós, pais e tias. Enquanto esperam a comida, me deixam explorar a área, correr entre as mesas, brincar com as outras crianças. E lá está ela. Uma menina de cachos loiros e vestido vermelho. Não consigo tirar os olhos dela, como se nunca antes tivesse visto uma criatura semelhante. Ela corre até o fundo do restaurante, dando gritos de alegria, e eu corro atrás. Ela se
agacha para engatinhar por debaixo de uma mesa e lá vou eu também. Ela volta correndo para o outro lado e eu a sigo. Não vejo o garçom que balança uma bandeja cheia de copos no ar — só tenho olhos para ela. Ele desvia no último momento, a bandeja lá no alto se inclina perigosamente, mas o garçom logo recobra o equilíbrio e continua o seu caminho. E eu continuo o meu, que é o dela e daqueles cachos selvagens que a cada passo saltitam pelo ar e parecem iluminar o ambiente à volta
daquela menina com as bochechas avermelhadas pela brincadeira.

Numa dessas idas e voltas pelo corredor e entre as mesas, chegamos perto da minha família.
— Sempre correndo atrás da menina — ouço minha mãe dizer.
— A primeira paixão — brinca meu pai.
Agora são minhas bochechas a ficarem vermelhas.


Ainda demoraria quase 25 anos até que eu vivesse, de fato, uma paixão com uma mulher. Na minha família, ninguém se surpreendeu. Meus amigos disseram “Até que enfim!”. Não houve saída do armário porque entrar num armário nunca foi necessário. Para que ficar reclusa, se posso ser livre? Mas eu sei que, mais uma vez, sou privilegiada. Nem todo mundo tem a sorte de ser acolhido dessa forma.

Amar é natural. Querer ser livre também. Tão natural que eu nem queria ter que escrever sobre isso. Mas ainda é necessário. Porque ainda tem muita gente no armário. Porque ainda há quem tenha medo de viver – ou de morrer – fora dele. Porque a cada hora uma pessoa LGBT é agredida no Brasil. Porque, como li recentemente, a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. Porque o Brasil é um dos países do mundo que mais mata sua população trans. E porque, por tudo isso, o armário pode parecer um lugar mais seguro, viver às escondidas pode parecer a melhor opção. Porque mesmo sem sofrer violência física, ainda existem os xingamentos na rua, existe o preconceito no trabalho, existem as piadas na escola, existem os comentários no grupo da família, existem lugares onde a gente acha melhor não andar de mãos dadas e os restaurantes onde ficaríamos esperando uma mesa para sempre. Existe a discriminação aberta e velada.

Eu sei que para muita gente, sair do armário ainda requer inúmeros enfrentamentos. Não julgo quem escolhe ficar dentro dele. Eu julgo é a sociedade que não acolhe, que dificulta tanto as pessoas serem livres e viverem a vida com quem quiserem.

Mas saiba que você não está só. Somos muit*s. E oxalá um dia possamos andar por aí de mãos dadas, você, eu e todo mundo. Oxalá um dia esta crônica e todos os armários se tornem coisa do passado!


      HOJE: Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia 

Yvonne Miller nasceu na cidade de Berlim em 1985, mas mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Atualmente vive em Pernambuco, no meio da Mata Atlântica, junto com sua esposa Larissa, sua enteada Morena, o gato Salém e o cachorro Chico. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora) e Histórias de uma quarentena (Expresso Poema Editora). É colunista do coletivo de cronistas nordestinas @bora_cronicar e do blog Escritor Brasileiro. Além de ficcionista é autora e redatora de livros escolares.

Instagram: @yvonnemiller_
 



Yvonne Miller  




Sempre algo interessante
para contar!

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