TECITURA


20 de Setembro, Herança Farroupilha, Orgulho
de Ser Gaúcho … tá. E os Lanceiros Negros?

Arte Daniel Silveira

20 de Setembro, data comemorativa no Rio Grande do Sul. O Dia do Gaúcho, como é falado, recorda o 20 de Setembro de 1835 como o Início da Revolução Farroupilha, ou A Guerra dos Farrapos.

Para o Brasil, marca a revolta civil mais longa de sua história, que durante dez anos (1835-1845) levou a marca de Decênio Histórico e teve como cenário o Rio Grande do Sul. A Revolução Farroupilha foi uma revolta regional contra o Governo Imperial do Brasil, na qual os revoltosos queriam se separar do Império do Brasil. Recebeu este nome por conta dos farrapos que seus participantes vestiam. Após ser feito um acordo de paz entre as partes envolvidas, a revolução chegou ao fim em 1º de maio de 1845. Fazendo qualquer pesquisa sobre o assunto, lendo os materiais didáticos ou livros de história, geralmente os textos apresentam esta versão dos fatos, um lado da visão do que foi a Revolução Farroupilha. Há muito mais!

Estamos revisitando o passado, fazendo releituras de nossa história e, em consequência, revendo o papel dos mitos e dos heróis neste processo. A poucos meses presenciamos um fato relacionado ocorrido em São Paulo quando do vandalismo exercido na Estátua de Borba Gato. Este fato expôs uma preocupação existente em relação à construção histórica, ao que se convencionou tratar como história e trabalhar com este material dentro da Educação através do material apresentado nos livros didáticos. Trouxe reflexões importantes acerca deste personagem essencial na construção do imaginário popular e cultural de São Paulo e do papel dos Bandeirantes, e levantou questões sobre a verdade do heroísmo destes “mitos” populares. E o outro lado? E os injustiçados, massacrados e escravizados por estes “heróis”, que não tiveram voz tampouco poder para fazer seus relatos?

O mesmo processo temos aqui, no Sul. Não é errado se manifestar, comemorar uma data tão importante para os gaúchos. Mas é preciso revisitar o passado, levantar pautas importantes, debater e estudar. Li este trecho em uma postagem do Instagram, desconheço o autor mas vou citar na íntegra pois é uma passagem bastante pertinente. “Não, não é proibido comemorar, não é proibido se orgulhar de ser gaúcho, nem proibido gostar de se pilchar e dançar no CTG. Também não é proibido curtir as festas (embora este ano não role). Não é proibido nada disso desde que ensinem nossas crianças sobre a verdadeira Revolução Farroupilha. Sim, a Revolução foi branca, elitista e mentirosa. Não libertou os escravos como prometeu, Bento Gonçalves o grande herói tinha um monte deles inclusive. Muito se fala que fazia parte da cultura da época, mas outras revoluções do período nas variadas regiões do Brasil foram contra a cultura da época e criaram revoltas de fato populares. Apenas ensinem o respeito aos Lanceiros Negros, falem sobre o Massacre dos Porongos, e parem de valorizar heróis que de heróis não tem nada! Depois disso então sim estão liberados para colocar o vestido de prenda ou a bombacha e sair por aí comemorando. Feliz dia do gaúcho!”

Achei bastante pertinente este texto, entre tantas manifestações que acompanhei pelas redes sociais. Não é uma questão de opinião apenas, trata-se de um fato histórico, científico, corroborado pela comunidade acadêmica e validado por diversos historiadores. E qual o motivo de ainda não se ter iniciado um processo de reconstrução histórica, um adendo necessário aos livros históricos e ao material didático distribuído e trabalhado em sala de aula? Qual a razão desta estagnação do sistema público frente a um tema já esclarecido? Por quê continuar omitindo informações das pessoas e dos educandos, referente a assuntos já elucidados? Será receio em desconstruir mitos, heróis? Já é hora de abraçar temas como este e trabalhar de forma séria sobre esta revisitação ao passado. Os tempos são
outros, e as culturas das sociedades evoluíram. O social e o bem comum, a empatia com o próximo e o respeito à diversidade e à pluralidade de nosso povo estão em evidência, e espero que assim continue. O Revisionismo Histórico faz-se necessário. Segundo Auguste Comte, criador do Positivismo, “ a História é uma disciplina fundamentalmente ambígua”, e, portanto, passível de várias interpretações. Mesmo os Conservadores podem incorrer no erro de defender tradições calcadas em informações equivocadas. Acredito na pluralidade de pensamentos e ideias, e levanto estas ideias. Quantos pensamentos e ideias seriam  diferentes se a base em que se formaram esses pensares e saberes fosse uma vírgula diferente? Elemento figurado, mas a proposta é esta. Estas revisões históricas não teriam papel fundamental, a partir de novas descobertas e redescobertas, de modificar argumentos já estabelecidos, ideias concebidas? Não sou um grande estudioso das obras de Paulo Freire, mas acredito que ele defenderia a metodologia aqui proposta. Bom, não sou especialista em um monte de coisas … mas conheço pessoas que são! E quando me proponho a escrever,
procuro o material desenvolvido pelos especialistas para tomar embasamento. Esta questão da Revolução Farroupilha é um exemplo!

Bom. Quem foram os Lanceiros Negros? Valho-me muitos dos conhecimentos  catedráticos da querida amiga e escritora Ângela Xavier, que indica a leitura da obra História Regional da Infâmia, do professor e historiador Juremir Machado da Silva. Vale muito a leitura para se apropriar destes assuntos! E a Coluna Arte e Cultura de hoje traz um texto magnífico da referida autora, intitulado 20 de setembro: uma data para refletir. Excelente material, explica de forma acadêmica e lúdica o tema levantado nesta tese.

Resumindo, quando da Revolução Farroupilha, os líderes do movimento se valeram de uma forte base militar formada por soldados negros, escravos das estâncias e charqueadas e também capturados em batalhas diversas. Estes negros receberam a promessa de liberdade em troca de seus serviços como combatentes. Formaram Forças de Infantaria e Cavalaria, formando os temíveis Lanceiros Negros, guerreiros habilidosos (li em textos afins de que eles adquiriram as mesmas habilidades de combate dos índios Charruas e Minuanos, montados ao lado do cavalo e atacavam assim, sendo mortais utilizando estas habilidades, marca de Sepé Tiaraju e seus bravos guerreiros. Pretendo pesquisar mais sobre este detalhe, esta história me fascina!). Fizeram história! Foram lendas! A história oficial tratou de tentar enterrar a memória destes bravos combatentes, foi realizado um trabalho de desconstrução, de desmitificação. Mas a tradição oral, os feitos destes guerreiros foram maiores! Ao final da Guerra dos Farrapos, os acordos de paz foram tratados. Mas e os negros? E as promessas de liberdade feitas a eles? Para o Império, tal atitude não poderia ser tolerada. A Economia Brasileira era muito baseada em patrimônio, e os escravos eram patrimônio valioso! Que infâmia! Intolerante! … - mas … foram heróis! Guerreiros temidos, lutaram com bravura e honra! Jamais se acovardaram! … nada disso importou. Nenhum argumento sensibilizou os “maiorais”. E os heróis Farroupilhas, os líderes gaúchos, calaram. Aceitaram. Sofrendo a traição daqueles em que confiavam, em especial de seu comandante David Canabarro, os valorosos Lanceiros Negros e a Infantaria Negra foram emboscados em Porongos em 14 de novembro de 1844. O “heroísmo” dos ditos vencedores da Guerra foi tal que emboscaram os Nobres Lanceiros quando estes já estavam desarmados. Morreram lado a lado, estes sim de forma heróica, foram mártires! Massacrados, mutilados, a história ali precisava ser esquecida, massacrada como eles. Mas houveram sobreviventes! E houveram homens, soldados, pessoas com uma consciência maior e que testemunharam tamanha covardia, não deixando morrer esta história! Mantendo viva a alma e a coragem, a honradez destes irmãos que morreram lado a lado, acreditando em promessas de pessoas que não tiveram tanta honradez a ponto de manterem suas palavras. Os Lanceiros mantiveram a sua! Lutaram, defenderam e foram massacrados pela sua palavra! Foram heróis, e dignos de terem sua memória enaltecida, de serem estudados! E a tradição oral tratou de manter viva esta palavra. Este heroísmo, este desprendimento.

Gosto muito de escrever e dissertar sobre diversos assuntos. Em minha graduação fiz cadeiras sobre História e Cultura Africana , sobre Africanidade, sobre a influência destas ricas culturas em nosso país, nossos costumes, nossa língua. Nunca aprendi tanto quanto nestes últimos meses, onde estou vivendo a experiência de manter um contato mais próximo com pessoas ligadas ao movimento negro, ativistas, escritores e escritoras, pensadores e pensadoras, entre outros estilos e pensares. Estou recebendo uma ótima acolhida, não negro que sou; fui convidado e ontem assisti à uma Live via Facebook maravilhosa intitulada Sarau do Lanceirinho Negro, promovida pelo Coletivo de Educação Antirracista do RS, com participação de Ângela Xavier, Sirmar Antunes, Rafa Rafuagi, entre outros. Palavras potentes! Aliás, indico para quem gosta de bons filmes, o excelente Netto Perde a Sua Alma, baseado na obra de Tabajara Ruas e com ótima performance de Sirmar Antunes vivendo o Sargento Caldeira, um Lanceiro Negro. Essencial! Enfim, estavam presentes membros importantes da comunidade artística, literária e educacional, tratando de temas pontuais e transversais, tratando da temática do Lanceiro Negro e sobre a Guerra Farroupilha. Em especial, é um tema complexo e comum a todos e todas, negros e não negros. A sociedade e comunidade não negra precisa se inteirar, se apropriar deste diálogo, incluir-se nas discussões destas pautas dado a relevância da herança cultural dos negros em nossa sociedade. Há movimentos ligados a isso, porém assim como é conhecida a relevância cultural negra para nossa sociedade geral, também é fato que o Racismo Estrutural está muito enraizado em nossos costumes. Não é culpa nossa, nascemos e somos criados dentro de ambientes em que alguns detalhes passam despercebidos. Esta segregação, esta importância em separar as sociedades em Superior e Inferior, originando os preconceitos e estereótipos, vem de uma herança mais antiga, de uma época de colonização e diferenciação entre os membros das sociedades, entre aqueles que tinham a função de servir daqueles que eram os patrões, as classes mais nobres destas sociedades. Percebem como os tempos mudaram e com eles, os hábitos, costumes, visão social? Aquilo que está internalizado enquanto sociedade, de forma negativa, precisa sim ser repensado e aprimorado ou excluído. E o Racismo Estrutural precisa ser excluído! Cito alguns exemplos, que passam muitas vezes despercebidos, tal o coloquialismo e costume em usar certas palavras ou locuções. Começamos pela palavra Denegrir, verbo originado do latim, da palavra “denigrare” que significa “tornar escuro” ou manchar”. Significa também difamar ou injustiça outra pessoa. Apesar da etimologia da palavra ser antiga, conota racismo, trata do que é subjetivo. Há outros termos, palavras sinônimas que melhor se adequam à mensagem proposta. Que tal extirpar este termo? Outro dia dei uma “escorregada” em um dos meus textos, publicados recentemente. Graduado e escrevendo bastante, por vezes passa detalhes pela pressa de escrever e não perder a ideia principal, e esses erros passam batidos pela revisão. Em um trecho do material, utilizei a expressão “período negro”. O texto teve boa aceitação, mas dois amigos chamaram em particular e apontaram a questão. Prontamente corrigi o equívoco, utilizando palavras mais objetivas e que denotam a situação. Senti uma certa vergonha por cair neste coloquialismo e, sem perceber, criar ofensas sem a intenção deste fato. Conversado com eles sobre o assunto, agradeci a interação. Sempre aprendemos algo! Um dos meus amigos é fã da saga Star Wars, assim como eu, e falou sobre esta outra questão do Racismo internalizado. A expressão no universo jedaísta “O Lado Negro da Força” só foi traduzido assim aqui, no Brasil. A tradução literal de “Dark Side of the Force” seria “Lado Sombrio da Força” ou até “Lado Obscuro da Força”, nunca “Lado Negro da Força”. São inúmeros detalhes, palavras, atitudes, gestos que precisam deixar de ser banalizados, precisam da atenção necessária. O combate ao Racismo Estrutural significa trabalhar com as culturas, e este processo leva gerações. Sem o engajamento dos não negros nestes debates, fica mais difícil alcançar o sucesso.

Muito se fala sobre a Educação. Eu acho ótimo! A Educação e os modelos educacionais precisam sempre estar em pauta! A comunidade escolar precisa repensar as metodologias, as formas de avanço e de avaliação, a revisão de temas propostos. É mais fácil tratar de matérias como Matemática, Física, Química, que detém temas importantes porém de difícil modificação, do que lidar com Português na área da Linguística e Semiótica, História, Geografia e até Biologia, que são matérias mutáveis, matérias que evoluem conforme avanços científicos ou sociais. E incluo neste ínterim o trabalho desenvolvido por alguns educadores/as e professores/as. Ângela Xavier e seu livro O Lanceirinho Negro e após este, Lanceiros Negros - A Batalha de Porongos é exemplo disso. Romper as barreiras e mexer com as instituições é difícil, sem apoio por parte da população, torna-se mais difícil ainda. Requer mudanças estruturais na história do estado e consequente mudanças nos livros didáticos e toda a estrutura envolta, inclusive capacitação dos professores e professoras sobre os temas envolvidos. Enfim, um bom assunto para refletir! Cultura, história, educação, racismo. Quantos temas! Em se tratando de Educação e Cultura, todo o debate é louvável e necessário, e a apropriação de conhecimentos e descobertas se faz cada dia mais importante.



Para assistir o Sarau Lanceirinho Negro clique aqui:




Sandro Ferreira GomesProfessor de Língua Portuguesa, Conselheiro Municipal de Políticas Culturais em Gravataí/RS, Servidor Público, Porto Alegrense, admirador das belas artes, do texto bem escrito e das variedades de pensamento.







03 ANOS DE COLETIVEARTS
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4 Comentários

  1. Ótimo texto e reflexão, adorei a arte. Mudar a educação é urgente, mas ainda vemos muita resistência.

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  2. Verdade. É um caminho árduo, e necessário!

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  3. Excelente reflexão sobre a Revolução Farroupilha!
    Acredito que exista uma explicação psicológica para a nossa sociedade estar se fixando demais em "estórias" contadas antigamente invés de encarar os fatos claros, oriundos de pesquisas e fontes fidedignas.
    Do que tanto temem? O que repercuti internamente em nós destruir um grande heroi? Quais responsabilidades teríamos de assumir, a partir do ponto em que passassemos a admitir a verdade?

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  4. Esta é a proposta do texto ... incitar reflexões!!!!!

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