Montanha-russa em verso,
roleta-russa inversa
Sempre quis verter em versos aquela sensação única de movimento fora de controle que é estar em uma montanha-russa; apenas para reviver aquele vento no rosto que dava gosto de viver, aquele quase ataque cardíaco inesquecível, aquela adrenalina deliciosa que acelera o mundo e me fazia querer explodir e incorporar nessa explosão toda a existência do universo. Para tal objetivo, passei muito tempo a escrever versos, tentando de todas as formas transpor tais sensações em palavras, sons, ritmos e significados, a fim de atingir a mais perfeita harmonia entre todos os elementos da existência de maneira a criar um poema o qual, quando lido, realmente trouxesse a sensação de estar descendo, a toda velocidade, uma volta gigante de uma montanha-russa, com o coração quase explodindo, sentindo a vida pulsar com toda a intensidade nas veias. No entanto, anos e anos se passaram e nunca consegui me satisfazer com meus versos a ponto de ler neles exatamente a transposição perfeita da sensação sobre a qual comentei acima.
A decepção após tantas e tantas tentativas que nunca atingiram a perfeição me levou a buscar outras formas de encontrar tal sensação, pois de tanto tentar transformar isso em versos e nunca ter sucesso em tal empreitada, meu gosto pela adrenalina fornecida pela queda em uma montanha-russa foi gradualmente sendo substituído por um novo gosto por quedas em geral: não conseguia mais pensar na sensação de intensidade da adrenalina da montanha-russa sem relacionar tal fato ao fracasso de meus versos que nunca compreenderam tal ideia, a ponto do efeito de tal sensação morrer em mim e um gosto por quedas em geral surgir, quedas que tragam mais adrenalina do que um simples parque de diversões: foi quando comecei a notar meus instintos autodestrutivos ganhando vida própria e tomando forma de prazer.
Assim dei início a um novo vício que substituiu minha obsessão por escrever versos nos quais buscava perfeição inexistente (pelo menos inexistente para um poeta do meu nível) por um hábito um tanto mais peculiar. O novo vício é só um pouquinho menos seguro, mas exatamente por esse motivo muito mais interessante. Tudo começou quando, em uma noite qualquer, comecei a refletir sobre o céu noturno quase vazio que vi pelo caminho até em casa, onde uma só estrela solitária brilhava acima de meus olhos, imersa em escuridão. Não me considero um homem tão ridículo quanto o personagem de Dostoiévski no conto O Sonho de um Homem Ridículo, mas, talvez por ter lido recentemente a obra, a estrela solitária me fez pensar em uma bala de revólver. Uma única bala que poderia fazer meus pensamentos explodirem até a morte e transformar todo esse vazio sufocante em simples poeira estelar mais uma vez (o que acredito que sempre é, mas os pensamentos, esses demônios, sempre nos fazem pensar que tudo possa ser algo mais).
A visão daquela estrela, o pensamento na bala, a relação com o personagem da literatura russa, tudo isso me levou a uma conclusão: não, eu não resolvi de vez cometer suicídio assim como o personagem russo, mas sim levar isso como um estilo de vida e viver até a última gota de adrenalina todos os dias. Viver cada dia literalmente como o último, pois, desde então, comecei a jogar roleta-russa todas as noites. Naquela primeira noite, cheguei em casa após a caminhada que me levara a ver a estrela e me sentei na poltrona da sala, a contemplar as dezenas de volumes em minha estante, enquanto bebia uma vodka e tomava coragem para começar. Eram onze da noite e eu decidira que o ritual seria realizado sempre à meia-noite, isto é, se eu sobrevivesse à primeira noite. Eu nem sei o que eu esperava, se queria ou não sobreviver, mas a adrenalina corria em minhas veias com vida própria e tudo o que eu queria era vivenciar aquela experiência, depositando toda minha energia na eternidade daquele jogo de vida ou morte.
Depois de duas doses de vodka, me levantei da poltrona, fui até a estante e tirei a arma que escondia atrás de um fundo falso na prateleira mais alta e a carreguei com uma só bala. Só uma chance de morrer. Cinco chances de viver. Vivemos por chances mesmo, o risco é inevitável: se não for assim, não estamos nem vivendo. Embriagado mais de adrenalina do que de vodka, segurei a arma, me sentei na poltrona, afundando a cabeça no encosto macio e contemplando por alguns segundos a arma, imaginando que poderiam ser meus últimos segundos de vida se realmente levasse isso adiante. Bom, se assim fosse, encerrar-se-iam meus dias de tédio; se não, novas noites de jogos viriam, novas chances de viver ou morrer, a adrenalina de descobrir se vivo ou morro cada vez acelerando mais meu coração. Por fim girei o tambor do revólver e, enquanto olhava fixamente pela janela para a estrela que me deu a ideia desse jogo, encostei o cano gelado da arma na têmpora direita e puxei o gatilho. Fechei os olhos e baixei a arma. Meu coração estava mais agitado do que a explosão do Big Bang, jurei que mundos inteiros deviam estar explodindo em minhas veias, existências inteiras surgindo e se apagando em um piscar de olhos como relâmpagos em um céu noturno. Minhas mãos suavam frio e tremiam tanto que quase deixei a arma cair no chão. Essa foi a primeira noite. Passei semanas ainda jogando com uma só bala, até que comecei a me entediar. Já não suava frio nem tremia e nada mais parecia corroer minhas veias com explosões existenciais quando eu puxava o gatilho. As balas eram a minha droga e o efeito estava ficando fraco: era preciso aumentar a dose.
Depois de quase dois meses sobrevivendo, a adrenalina não era mais a mesma e resolvi colocar duas balas. Sentia-me morto por dentro, pois meu coração não acelerava mais tanto, e o perigo de arriscar tudo naquele jogo fatal parecia ser uma lenda, como se a bala nem sequer existisse. Como se a possibilidade da morte não existisse para mim. Talvez eu esperasse que uma daquelas noites tivesse sido a última, mesmo que o motivo inicial do jogo fosse a adrenalina. Talvez eu realmente quisesse morrer e não conseguisse confessar a mim mesmo tal desejo mórbido. A intensidade morrera em mim, até mesmo o jogo fatal se tornara uma rotina que começava a me entediar. Por isso resolvi mudar o ritual e coloquei duas balas. Na noite, seguinte, três. Depois, quatro. Até que hoje resolvi fazer a roleta-russa inversa e, em vez de jogar com mais chances contra mim, jogarei com cinco chances que beneficiam meu instinto suicida e uma só que me faz continuar respirando esse vazio que me afoga cada dia mais.
Meus versos nunca foram vivos o suficiente para respirar por conta própria e transbordar por entre o véu que separa a trivialidade da eternidade existencial de cada um, mas com a roleta-russa inversa eu vivenciarei a fruição de tal eternidade em poucos segundos, me tornarei meus versos vermelhos e mais vivos, aqueles que só poderei escrever quando meu sangue transbordar pelo crânio e eu serei o néctar tóxico que embriagará o mundo. Por mais doentio que pareça, quero a sensação singular de liberdade que somente o ato de percorrer as estradas mais sombrias e menos tomadas pode oferecer. Se a luz é veloz, fico imaginando a velocidade da escuridão; sonhei que o lirismo mais verdadeiro e puro do mundo se oculta em tais caminhos e é neles que desejo me encerrar para então me libertar, com o encontro de uma só estrela vazia em um céu estrelado.
Olho pela janela e vejo que há muitas estrelas
no céu esta noite. Muitas chances de eu encontrar uma delas. Giro o tambor quase cheio do revólver e pressiono o gatilho. Entretanto, entre tantas estrelas no céu, desmaio com neblina nos olhos mareados. Talvez seja sorte, talvez seja azar, não sei de mais nada. Só espero não ser imortal, não nesse mundo, não nessa alma sem alma que já não se embriaga com os versos desse universo, nem com balas que parecem fugir desse crânio entorpecido de tédio.
Amanda Leonardi |
Amanda Leonardi é Mestre em Letras pela UFRGS e escreve ficção. Já publicou contos e poemas em diversas antologias nacionais, colabora com os sites Nota Terapia e Artrianon e mantém a página @esqueletras onde posta microcontos de terror, resenhas e curiosidades literárias.
Para conhecer um pouco mais sobre a Amanda, escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com ela clicando aqui.
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