ESSE ESTRANHO NOVO MUNDO

 

A BESTIALIDADE HUMANA

Segundo o filósofo e escritor Jean Paul Sartre: “ A tortura não é desumana; é simplesmente um crime ignóbil, crapuloso, cometido por homens... o desumano não existe, salvo nos pesadelos que o medo engendra”.

Foram precisas décadas para que alguns arquivos de áudio comprovassem, o que a dor de milhares de famílias já sabia. A tortura foi institucionalizada durante a ditadura militar nesse país. No período mais duro desse regime, depois da vigência do Ato Institucional Nº 5, em que mandatos parlamentares se perderam, em que houve a suspensão de quaisquer garantias constitucionais, da liberdade política, civil e de expressão dos cidadãos, esse crime abominável tornou-se corriqueiros nos porões das Delegacias de Organização Política e Social (os DOPS) espalhadas pelo país.

Enquanto o presidente militar desse período, o general Emílio Garrastazu Médici proclamou um ideário fantasioso: “era uma guerra, depois da qual foi possível devolver o país à paz. Eu acabei com o terrorismo neste país”, o seu sucessor e também general Ernesto Geisel, admitiu num acesso de franqueza vergonhosa: “acho que a tortura, em certos casos, torna-se necessária, para se obter confissões”.

Mas como é recorrente que o brasileiro tem memória curta, passados quase cinquenta anos, já havia quem questionasse a existência de um regime ditatorial, que seria apenas um governo militar e por óbvio, não admitia os desaparecimentos e as torturas.

Pois menciono dois episódios de experiências pessoais. Nos anos 90 tive como vizinha uma senhora septuagenária que morava sozinha, apenas com a lembrança permanente do filho único que desaparecera nos anos 70, quando era um estudante universitário em Porto Alegre. Anos depois, essa senhora tornou-se a primeira cidadã brasileira a receber uma indenização do governo federal, a partir da existência da Comissão da Verdade. De outra parte, há seis anos tive um dos maiores desafios da minha carreira como roteirista, ao ficar por três meses examinando e selecionando arquivos de vídeo e áudio, que ocupavam dois HDs de 500G, com depoimentos de um senhor, também septuagenário, que fora professor universitário e ex-vereador no município de Braga (RS), mas que em sua juventude como estudante universitário fora preso, acusado de ser um integrante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), levado encapuzado à Porto Alegre e submetido à sessões de tortura que lhe causaram sequelas físicas e psíquicas por toda a vida. Essa pesquisa resultou no roteiro do documentário curta metragem “Amanhecendo Cicatrizes”, realizado por um grupo de amigos dedicado ao cinema da cidade de Três Passos e que segue em exibição em Festivais e Mostras pelo país e no exterior.

E se alguém questionar o porquê de trazer esse tema tão desconfortável à tona, a resposta é uma só: para que o reconhecimento desse crime seja pleno e evidente, e se torne um empecilho definitivo para que essa forma de bestialidade humana nunca mais se repita como política de Estado ou como qualquer outra forma de relacionamento entre seres humanos.

Nesse estranho novo mundo do século XXI temos que lutar para reafirmamos nossas condições de seres humanos, que evoluem pautados por conceitos e por práticas morais e éticas, compreendendo a importância de todas as formas de vida, respeitando as diferenças étnicas, sociais, de gênero e de credo, pois todos pertencemos à mesma humanidade. Uma humanidade que só dará um passo além em sua escala evolucionária, quando for regida exclusivamente por todas as formas do Amor.


Assista AMANHECENDO CICATRIZES


João Luís Martínez 

João Luís Martínez é ator, escritor, diretor, dramaturgo e roteirista atuando nas áreas do Teatro e do Audiovisual (cinema, TV e web) há mais de trinta anos. Desde 2011 faz parte do corpo docente do Studio Clio – Instituto de Artes e Humanismo, uma instituição prestigiosa na cultura porto-alegrense, onde ministra cursos e oficinas de roteiro. Há três anos ministra as suas oficinas de modo on-line, contribuindo para a formação de novos roteiristas para o mercado.


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2 Comentários

  1. Pois é, João Luís...e é triste ver pessoas, principalmente do meio artístico, defendendo esse tempo e mais, querendo a volta da ditadura. Não consigo defende-los usando a desculpa de desconhecimento. Na minha opinião é mau caratismo. Belíssimo texto. Abc

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